segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Capital e hegemonia

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 310 - dezembro/2013
Importantes autores, como os sociólogos, como o espanhol Manuel Castells e a holandesa Saskia Sassen, conferem especial relevo ao papel das cidades globais para a economia e a geopolítica mundiais. Lugar privilegiado para os negócios, a cultura, a vida social, tais cidades seriam os nós vitais das trocas, da inovação e do conhecimento contemporâneos.
Embora tal compreensão não seja inédita, porquanto as cidades têm sido historicamente os centros da política, da religião, da economia e da cultura – nos tempos modernos os estados nacionais estiveram à frente no protagonismo internacional.
Não obstante, no caso brasileiro, há quase duzentos anos atribui-se à condição de capital a responsabilidade de motor propulsor do desenvolvimento. A sua interiorização foi tratada como necessária para o melhor aproveitamento das riquezas nacionais, associando-se essa estratégia a José Bonifácio. Lucio Costa registrou, em sua Memória Justificativa do Plano Piloto da capital, que Brasília seria “o sonho do Patriarca”.
De fato, a historiografia brasileira confere a Bonifácio a ideia de transferência da capital do Rio de Janeiro para o interior do país, consignada na primeira constituição do Império, de 1824. Alguns citam Hipólito da Costa como o pioneiro, através de seu Correio Braziliense, editado em Londres a partir de 1808. Mas há omissão quanto ao papel desempenhado pela estratégia inglesa no âmbito da guerra contra Napoleão, claramente descrita por William Pitt (1759-1806), em discurso proferido no Parlamento britânico, no segundo período em que foi Primeiro Ministro (1804-1806).
Mr. Pitt, o Novo, defendia um acordo entre Portugal e a Inglaterra para o domínio do comércio internacional e a guerra contra a França, no qual era crucial garantir a posse da “península” sul americana, do istmo do Panamá ao estreito de Magalhães. Para tanto, como diz, “convém à Grã-Bretanha fazer assentar [no Brasil] o Trono do Imperador Português”. (A tradução desse discurso foi publicada em 1809 pela Imprensa Régia de Portugal.)
Em essa fala, com 14 páginas, mais de oito são dedicadas à detratação da França napoleônica, considerada por ele como a causadora da destruição dos reinos europeus, da religião e da paz internacional.
Para se contrapor a Napoleão, porém, não lhe bastava a aliança com Portugal. Para garantir a hegemonia do comércio do hemisfério sul, exigia a mudança da Corte lusitana para o Brasil, sob ameaça velada de invasão das terras brasileiras pela Inglaterra.
O que nos traz o interesse para o seu discurso é que associa o sucesso dessa estratégia à fundação de uma nova capital do Império dos Braganças no coração do Brasil.
 “No País das Amazonas (...) ou nas vizinhanças do Lago do Xarife, que é a origem do Rio da Prata, ou seja, no Centro do país, se edificará e fundará uma cidade denominada Nova Lisboa, para Corte e assento do Imperador.”
Essa descrição corresponde ao Planalto Central, onde, justamente cento e cinquenta anos depois desse discurso de Mr. Pitt, não mais um Bragança, mas a República, fará erguer a capital do Brasil. E com que característica geopolítica?
“De Nova Lisboa se abrirão estradas reais, que, a maneira de raios que correm do centro para a periferia, conduzirão de Nova Lisboa para Caiena, Santiago, Pará, Rio de Janeiro, Olinda, Lima, etc (...).”
Nessa concepção, de irradiação continental, estará descrita uma verdadeira proto cidade global de Castells e Sassen?

De certo é que, com a construção da capital, no século XX, tratou-se também de implantar um sistema rodoviário radial que cruzou o país em todas as direções. Não chegou a alcançar as cidades da América espanhola, como desejava o primeiro-ministro inglês. Nisso D. João não lhe obedeceu. Afinal, Mr. Pitt já havia partido desse mundo quando o Príncipe partiu de Portugal para a Península.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Cidades melhores para as pessoas

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 09/11/2013
Sérgio Magalhães

Há 50 anos realizou-se no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, a sessão de encerramento de uma série de encontros nacionais dedicados ao tema urbano. Promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e intitulado Seminários de Habitação e Reforma Urbana, tornou-se um marco histórico pelo enfoque e pelas propostas, algumas ainda atuais.
A ênfase foi na moradia e na questão fundiária, em função da emigração do campo. Quitandinha propunha que a Reforma Urbana fosse incluída, em simetria com a Reforma Agrária, no rol das “reformas de base”, então dominantes na pauta política brasileira.
De lá para cá, o Brasil deixou de ser predominantemente rural e hoje 85% de seus 200 milhões de habitantes vivem em cidades. O país industrializou-se, tornou-se celeiro mundial, é potente em energia. É uma democracia.
Apesar de ser a sexta economia mundial, metade dos domicílios não tem esgoto adequado, a moradia é em sua maioria irregular, dezenas de milhões de brasileiros perdem horas diárias em um trânsito caótico; os serviços públicos (inclusive o de segurança) atendem apenas partes das cidades.

Por que o Brasil enfrentou desafios na economia, na produção, na política, e não foi capaz de fazê-lo em relação à cidade? 

A experiência demonstra que o crescimento econômico não é suficiente para superar as dificuldades urbanas. (Ao contrário, ele as pode agravar, como Jane Jacobs avaliou para as cidades norte-americanas ainda nos anos 1960.) Para supera-las, é preciso reconhecer os problemas, inclui-los na agenda política, assumir compromisso coletivo.
Sem os enfrentar, é o país que perde.
A cidade é o núcleo potencializador do mundo contemporâneo em suas áreas dinâmicas: economia, cultura, inovação, conhecimento, comunicação. É um equívoco imaginar-se o desenvolvimento nacional dissociado da qualificação das cidades.
No cinquentenário do primeiro evento de reforma urbana brasileiro, arquitetos e amigos da cidade voltam ao mesmo local para concluir novo ciclo de debates, desenvolvido ao longo de 2013 em diversos estados de todas as regiões do país. Intitulado Quitandinha + 50, identificou o cerne dos desafios a enfrentar como composto pelas questões ambientais, pela desigualdade e pela mobilidade.
Em desdobramento, o Q+50 propõe a criação de metas locais e nacionais para a universalização dos serviços públicos e do crédito habitacional diretamente às famílias. Considera que a mobilidade nas grandes cidades precisa estar baseada no pedestre e em rede de transporte público de alta capacidade. E, sob o ponto de vista da gestão, defende a participação e transparência nas decisões, com cidades permanentemente projetadas, como função de Estado, e não de governo; metrópoles com estatuto próprio; e licitação de obras públicas somente a partir de projeto completo. Cidades melhores, para as pessoas.

Mudaram os tempos, mudaram as ênfases – e as cidades carregam os problemas do século passado. Mas elas clamam por uma agenda pública que as conduza para a contemporaneidade.

UMA AGENDA PARA A CIDADE

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 309 - novembro/2013


Há 50 anos, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, aconteceu a sessão de encerramento de uma série de debates nacionais dedicados ao tema urbano. Esse projeto, intitulado ‘Seminários de Habitação e Reforma Urbana’ e promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, é um marco histórico pela qualidade do enfoque e das propostas, algumas ainda atuais.
O “Seminário de Quitandinha” propunha que a reforma urbana fosse incluída, em simetria com a reforma agrária, no rol das ‘reformas de base’, então dominantes na pauta política brasileira. A ênfase era na moradia e na questão fundiária, em função da imigração do campo.
De lá para cá, o Brasil deixou de ser predominantemente agrário – hoje, 85% de seus 200 milhões de habitantes vivem em cidades. Temos 20 metrópoles e duas megacidades. O país industrializou-se, tornou-se celeiro mundial, é potente em energia. Somos uma grande democracia.
Deixamos para trás a cidade – modelada pela explosão demográfica, pela industrialização e pelo automóvel – do século 20, quando se acreditava que os problemas urbanos seriam solucionados com o crescimento econômico.
Chegamos ao século 21. Embora o Brasil seja a sexta economia mundial, metade dos domicílios nacionais não tem esgoto adequado, a moradia é em sua maioria irregular, dezenas de milhões de brasileiros perdem horas diárias em um trânsito caótico e os serviços públicos (inclusive o de segurança) atendem apenas partes das cidades. Encontramo-nos diante da cidade fragmentada, da cidade partida, da cidade dispersa.
Por que o Brasil enfrentou desafios na economia, na produção, na política e os encaminhou para a superação, e não foi capaz de fazê-lo em relação à cidade?
A experiência demonstra que o crescimento econômico não é suficiente para neutralizar as dificuldades urbanas – ao contrário, elas podem se agravar, como a jornalista e ativista Jane Jacobs (1916-2006) avaliou para as cidades norte-americanas ainda na década de 1960. O entendimento de que a cidade melhora ou piora conformr as oscilações da ecomia, da política ou da demografia, é visão de uma parte da questão, e não necessariamente corresponde à mais importante.
Sabe-se que a cidade é o núcleo potencializador do mundo contemporâneo em todas as suas áreas dinâmicas: economia, cultura, inovação, conhecimento, comunicação. Ao contrário do que antes vigorava, é noção equivocada imaginar o desenvolvimento nacional sem a simultânea qualificação da cidade. Isto é, sem a universalização dos serviços públicos (inclusive o de segurança), sem espaços públicos bem estruturados e vivos, e, sobretudo, sem a redução das brutais desigualdades intraurbanas.
Não há fórmulas mágicas para enfrentar os problemas ambientais, da mobilidade e da desigualdade.
Neste mês, arquitetos e amigos da cidade voltam ao Quitandinha para concluir um ciclo de debates urbanos realizado ao longo de 2013, intitulado ‘Q+50’. Mudaram os tempos, mudaram as ênfases – e as cidades carregam os problemas do século passado. Mas elas clamam por uma agenda pública que as conduza para a contemporaneidade.

Linha de continuidade



Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 308 - outubro/2013

A mágica das cidades está em seus edifícios, em suas ruas e na mescla com seus acidentes geográficos; mas não é suficiente. Edificações, áreas públicas e geomorfologia conformam a imagem ambiental. Mas a cidade ainda não tem alma.
 “Que será Buenos Aires?”, pergunta em poema o escritor portenho Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, o que as fachadas ocultam, é o meu inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
É no uso, nas interrelações que estabelecemos com as coisas e com as pessoas ao usufruirmos o espaço urbano, que construímos nossa identidade e nossa memória coletivas. A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana. Também fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar satisfatórias condições de habitação e mobilidade.
A defesa desses valores tem assumido crescente relevo e eles têm se afirmado na consciência coletiva como elemento central de nossa contemporaneidade.
No entanto, há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado. Tal carência, por óbvio, não se apresenta distribuída igualmente no tecido urbano, havendo enormes assimetrias na prestação dos serviços públicos – que se manifestam no domínio territorial por bandidos armados de parcelas significativas de áreas pobres das grandes cidades; na falta de saneamento para quase metade dos domicílios urbanos brasileiros; nas dificuldades crescentes na mobilidade das metrópoles e mesmo nas médias cidades; entre outros.  Na medida em que as exigências contemporâneas aumentam e se complexificam e os serviços públicos não as acompanham adequadamente, esse descompasso implica em desigualdades sociais que se acentuam.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, essas assimetrias não podem ser apenas constatáveis a cada pesquisa. Elas precisam servir como base para políticas públicas que se dirijam a assegurar o pleno direito à cidade. Haver um bairro dominado por bandidos armados não pode ser “naturalizado” – sobretudo depois da experiência das UPPs, no Rio de Janeiro. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.

Certamente, a universalização dos serviços públicos há de ser um compromisso coletivo que precisa ter consequências práticas. Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que feitas de concreto. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços comuns, a sua tênue linha de continuidade. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Não podemos ser derrotados

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 12/10/2013
Sérgio Magalhães

Em recente entrevista ao Globo, o governador do Rio de Janeiro afirmou que o caso Amarildo só foi elucidado porque a Rocinha tem uma Unidade de Polícia Pacificadora.
As UPPs são a mais importante medida de recuperação para o âmbito da proteção constitucional de territórios então dominados pela bandidagem armada. Sua abrangência é ainda limitada, mas melhorou a percepção de segurança na cidade. Consequências positivas potencializam a fruição dos espaços públicos e a interação entre partes antes excluídas do Rio. Fortalece-se a economia, a vida social, a cultura; a própria cidade.
Contudo, as UPPs não são uma panaceia.
O primeiro valor desse projeto é retirar do domínio discricionário de bandidos as populações moradoras naqueles territórios. Um segundo, e fundamental, é evidenciar as virtudes da recuperação da legalidade para o conjunto urbano.
A omissão do Estado, durante décadas, o abandono a que relegou áreas pobres da cidade – sejam favelas, loteamentos ou conjuntos residenciais – teve consequências brutais para os moradores dessas áreas e para a cidade como um todo. Impulsionou a decadência e a degradação urbana, econômica, política e social de bairros e regiões, e da própria metrópole.
Mas não é uma etapa vencida.
O projeto das UPPs cumpriu o papel de evidenciar o possível. E demanda duas consequências: primeiro, que em prazo razoável alcance toda a metrópole, desonerando as partes ainda não atendidas do ônus da presença dos bandidos expulsos dos territórios legalizados; segundo, que os serviços públicos se implantem como rotina, tal como no restante da cidade.
A retomada, se de início é de natureza policial-militar, não pode construir uma nova ordem à parte da cidade. Não pode o capitão ser um novo guia. O papel do Estado é sintetizado nos serviços públicos e na lei.
A defesa do território e do cidadão é expressão do serviço público de segurança, monopólio do Estado. Tal serviço, historicamente escasso nas áreas pobres, não é o único indispensável na cidade contemporânea. Os demais serviços públicos, relacionados ao saneamento, ao transporte, à educação, à saúde, ao bem-estar, enfim, à vida urbana precisam ser garantidos em todos os territórios.
Essa é a equação política que as UPPs tornaram urgente.
Enquanto a rotina democrática não estiver instalada, enquanto a resistência burocrática da administração não estiver superada, enquanto os serviços públicos não estiverem em normal funcionamento, compete aos mandatários eleitos monitora-los para que sejam prestados em condições adequadas, sistemáticas, impessoais e republicanas. Pela omissão histórica do Estado, é um trabalho que pode ser longo e talvez não possa ser delegado. Certamente, ultrapassará governos.

Ao governador e ao prefeito se confere o mérito da cidade reencontrar-se com a esperança. Não podemos, eles e nós, ser derrotados pela insuficiência de desdobramentos das atribuições do Estado na prestação dos serviços públicos. A consequência da UPP não há de se esgotar na evidência de que sem ela o caso Amarildo teria ficado às escuras.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NÚMEROS NÃO MENTEM




Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 307 - setembro/2013


Em julho, o Brasil emplacou 300 mil novos veículos. Em um ano, provavelmente serão 3 milhões. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calcula que a população brasileira tende à estabilidade até 2030, perdendo população, a seguir.
Essas contas são questões isoladas? Não. Elas compõem um quadro representativo de temas essenciais para as cidades brasileiras. Mobilidade, serviços públicos e ocupação urbana são elementos fundamentais para a qualidade de vida cidadã e também para o desenvolvimento nacional.
O número de veículos licenciados reflete a prioridade que os governos têm dado à indústria automobilística. A partir dos anos 1960, o país optou pelo rodoviarismo. Desconstruiu a rede de bondes, enfraqueceu as ferrovias urbanas, desconsiderou o transporte de alto rendimento, investiu em viadutos, elevados, alargamentos de vias e constituiu um transporte coletivo baseado em ônibus, incapaz de suprir as exigências das grandes cidades nos deslocamentos impositivos casa-trabalho.
(Parece ter sido adotado um modo de reduzir a frustração ante tal sistema de transporte criando-se no usuário a esperança de que mais adiante ele será um feliz proprietário de automóvel – e poderá pairar em engarrafamentos crescentes com conforto: sentado, com ar condicionado e ouvindo a música preferida...)
Essa opção desestruturou o espaço público, descaracterizou bairros e expandiu as cidades para muito além do que o aumento demográfico exigiria. A infraestrutura e os serviços públicos não acompanharam tal expansão. Partes das cidades se viram abandonadas pelo Estado, permitindo que bairros pobres – favelas, loteamentos e conjuntos residenciais – fossem dominados por bandidos armados.
Não mais crescendo a população, como prevê o Ipea, será preciso desconstruir a ideia hegemônica de que expandir a cidade é sinal de progresso. Ao contrário, cidades compactas aumentam a chance de melhor atendimento à população e tornam mais baratas infraestruturas e serviços públicos. O Estado, portanto, poderá ter melhor desempenho no papel de prestador de serviço público, inclusive o de segurança. Não faz mais sentido estimular a ocupação de novas áreas, investir recursos públicos na expansão da mancha urbana – e abandonar os bairros consolidados.
O Estado brasileiro – nas três instâncias de governo – tem responsabilidade nesse quadro, seja por opções equivocadas ou por omissão, e precisará rearrumar-se para enfrentar os desafios contemporâneos.
A ditadura de índices econométricos a que as cidades são submetidas, que lhes impõem mais automóveis, precisará dar lugar à avaliação qualitativa no desempenho da vida urbana e cidadã. A universalização da infraestrutura urbana e dos serviços públicos, inclusive o de segurança, é uma exigência democrática que as ruas estão a exigir. E a contenção das cidades é uma equação que se promove justamente com transporte de alto rendimento (do tipo metrô), com aproveitamento e manutenção das infraestruturas existentes, com crédito para habitação. E também sem estímulos à especulação de terras e sem investimentos públicos em lugares que possam levar à expansão. Os privilégios devem ser dados aos locais onde as pessoas vivem e à melhora das condições de mobilidade, em especial à relação quotidiana casa-trabalho.
Os incipientes quadros de planejamento urbano e territorial mantidos pelo Estado foram desfeitos nas últimas décadas. Mesmo no setor privado, as equipes de planejamento e projeto desestabilizaram-se ante a escassez de políticas públicas correspondentes.
Somos, porém, quase 200 milhões de brasileiros em cidades. É urgente  recuperar a capacidade nacional de enfrentamento das demandas de médio e longo prazo localizadas no sistema urbano brasileiro. 

RUAS COM ALMA


Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 306 - agosto/2013

“Eu amo a rua”, diz João do Rio (1880-1921), em sua crônica-ensaio que inaugura o livro famoso, acrescentando: “esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse que esse amor é partilhado por todos vós.” Amor que “une, nivela e agremia”, o “único que resiste às idades e às épocas”.
“A rua do alinhado das fachadas, é um fator de vida das cidades” – “é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”, diz o nosso autor. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores modernistas do urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado das fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), e disseminou-se mundialmente como febre avassaladora. Buscou-se uma nova cidade, onde a igualdade, o socialismo e o nivelamento social fossem produzidos por um novo modelo de urbanismo – sem ruas. Nele, cada função urbana (morar, trabalhar, circular, recrear) estaria bem definida e se constituiria autonomamente das demais.
A cidade modernista criou os bairros homogêneos, os condomínios isolados, os altos edifícios autônomos da vizinhança, os shoppings centers, as autopistas, os elevados – e a ausência de calçadas.
Cem anos pode ser pouco na vida das cidades – mas pode nelas promover grandes mudanças. Assim ocorreu com as cidades que cresceram nas últimas décadas sob a égide modernista. O lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por veículos e pela velocidade. Esse modelo foi algoz das ruas: não acabou com elas, mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos, poluídos, desinteressantes.
Os edifícios foram dispensados de manter relação de escala com o espaço público; independentes do lugar e da paisagem, responderam muito bem ao interesse imobiliário. O mesmo interesse, aliás, que faz expandir a cidade, consumir mais terra urbana sem proporção com o crescimento demográfico, em bairros cada vez mais distantes e menos densos. Portanto, resultando em infraestrutura, transporte e serviços públicos mais caros e mais escassos.
Tal modelo urbanístico, demonstrado como insustentável e anti-urbano, ainda é o adotado pelas cidades brasileiras. No entanto, quando viaja ao exterior, em geral, o brasileiro busca cidades onde a rua mantém vitalidade, onde o espaço público é bem estruturado, onde se caminha por ruas-corredores com calçadas bem mantidas, com interesse diversificado de funções urbanas. A escala urbana adequada, mesmo em cidades de altos edifícios, como Nova York, garante ruas nas quais o convívio é realçado por inúmeras atividades diversas ao nível do passante. Cidades europeias, como Paris ou Londres, mantém edifícios corporativos de alto nível empresarial integrados a áreas residenciais, comerciais e de serviços de pequena e média escala.
Quando as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, elas retomam momentaneamente a antiga vitalidade, e reivindicam uma qualidade urbana que sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade da segregação, do isolamento, do desperdício, da falta de serviços, da “imobilidade” de custo proibitivo e da circulação sem vida – esta cidade não corresponde ao sonho contemporâneo.
Paradoxalmente, o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que tem alma.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O espírito da cidade


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 14/09/2013
Sérgio Magalhães

“Que será Buenos Aires?”, pergunta em famoso poema o escritor argentino Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, é o meu inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana e fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar condições satisfatórias de habitação e mobilidade.
Mas, se esses valores têm se afirmado na consciência coletiva, ainda são escassos. Há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado.
Em recente estudo, o Observatório das Metrópoles faz uma avaliação sobre as condições de “bem estar urbano” relativas às quinze maiores cidades metropolitanas brasileiras. Os pesquisadores Raquel Oliveira e João Nery informam que, dos 338 bairros que compõem a cidade metropolitana do Rio de Janeiro, 134 (40%) apresentam condição ruim ou muito ruim segundo os indicadores considerados. Na mobilidade, 240 bairros (71%) apresentam condição ruim ou muito ruim. Segundo dados da ANTT, entre as metrópoles, o Rio tem o mais alto percentual de moradores que gastam mais de duas horas nos trajetos casa-trabalho.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, esses números não podem ser apenas estatísticas, renovados a cada pesquisa. Somos nós. Haver um bairro dominado por bandidos armados não é inevitável – sobretudo depois da experiência das UPPs. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.
Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder na metrópole.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que estáveis [e feitas de concreto]. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços, a continuidade de nossos vínculos essenciais. O “último espelho” e o futuro comum.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Não plantou e quer colher?


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 17/08/2013
Sérgio Magalhães

Em julho, o Brasil emplacou 300 mil novos veículos. No mesmo mês, sedes do AfroReggae sofreram atentados a bala em favelas, no Rio. O IPEA calcula que a população brasileira pouco crescerá até 2030.
São questões isoladas? Não. Mobilidade, segurança e ocupação urbana são temas  interligados e fundamentais tanto para a qualidade de vida cidadã quanto para o desenvolvimento nacional.
O número de veículos licenciados reflete a prioridade que os governos têm dado à indústria automobilística. A partir dos anos 1960, o país optou pelo rodoviarismo. Desconstruiu a rede de bondes, enfraqueceu as ferrovias urbanas, desconsiderou o transporte de alto rendimento, investiu em viadutos e alargamento de vias. Essa opção desestruturou o espaço público, descaracterizou bairros e expandiu as cidades além do que o aumento demográfico exigiria.
A infraestrutura e os serviços públicos não acompanharam tal expansão. Partes pobres das cidades foram abandonadas pelo Estado, permitindo que favelas, loteamentos e conjuntos residenciais fossem dominados por bandidos armados.
O AfroReggae nasceu nesse contexto, e se dedica a apoiar jovens moradores de favelas a se libertarem das amarras do tráfico, através da arte. Seu líder tem sido alvo de ameaças, atribuídas a traficantes incomodados por ações em favelas onde há UPPs.
Sem crescer a população, como prevê o IPEA, não faz sentido expandir a cidade. Ao contrário, cidades compactas são mais econômicas nas infraestruturas e nos serviços públicos. Nelas, a resposta urbanística à mobilidade se promove não com mais automóveis, mas, justamente, com rede de transporte de alto rendimento (do tipo metrô) e com aproveitamento das infraestruturas existentes. E, claro, sem estímulos à especulação de terras e sem investimentos públicos que levem à expansão. Os privilégios devem ser dados aos lugares onde as pessoas já vivem e trabalham.
           
A ditadura de índices econométricos, que impõe às cidades mais automóveis e menos serviços, deverá ser rejeitada: ela plantou desigualdade. Precisará dar lugar à política que universaliza os serviços públicos, inclusive o de segurança, e valoriza o desempenho qualitativo da vida cidadã. Nenhuma parte da cidade sem a proteção da Constituição!
Mas o Estado brasileiro, nas três instâncias, precisa rearrumar-se para enfrentar os desafios urbanos contemporâneos – que as ruas estão a evidenciar. Os incipientes quadros de planejamento urbano e territorial do Estado foram desfeitos nas últimas décadas. Mesmo no setor privado, as equipes de planejamento e projeto desestabilizaram-se ante a escassez de políticas públicas correspondentes.
Seremos, porém, quase 200 milhões de brasileiros em cidades. É urgente construir a capacidade institucional de enfrentamento das demandas de médio e longo prazo localizadas no sistema urbano brasileiro. Para colher bem-estar, precisamos plantar cidades mais democráticas.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A vida encantadora das ruas



Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 20/07/2013

“Eu amo a rua”, diz João do Rio, em crônica que inaugura seu livro famoso; e acrescenta: “esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse que esse amor é partilhado por todos vós.” Amor que “une, nivela e agremia”, o “único que resiste às idades e às épocas”.
“A rua do alinhado das fachadas é um fator de vida das cidades” – “é a mais niveladora das obras humanas”, reitera. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores do urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado das fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, e disseminou-se mundialmente como febre avassaladora. Na cidade funcional, tudo seria autônomo: morar, trabalhar, recrear, circular; cada função em seu lugar.
O lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por veículos e pela velocidade. Tal modelo foi algoz das ruas preexistentes: não acabou com elas, mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos, desinteressantes. Os edifícios foram dispensados de manter relação de escala com a rua; independentes do lugar e da paisagem, atenderam muito bem ao lucro imobiliário.
Ainda são frutos desse modelo funcionalista os bairros homogêneos, os condomínios isolados, os shoppings centers – e, logo, as autopistas, os elevados e a ausência de calçadas. Também os Centros sem moradia, vazios à noite e aos fins de semana. (Lembremos que, no Rio, por trinta anos foi proibido construir habitação na área central – em benefício dos novos bairros.)
Em especial, o isolamento entre funções urbanas exige o uso de condução para deslocamentos banais e leva ao aumento no tempo de viagem casa-trabalho, alcançando o impasse que hoje assombra nossas cidades.
No entanto, quando viaja ao exterior, em geral, o brasileiro busca cidades com espaços públicos bem estruturados, onde se caminha por ruas-corredores de calçadas bem mantidas, de usos diversificados. A escala urbana adequada, até em cidades de arranha-céus, como Nova York, garante ruas nas quais o convívio é realçado por inúmeras atividades ao nível do passante. Cidades como Paris ou Londres mantém edifícios corporativos de alto nível empresarial integrados a áreas residenciais, comerciais e de serviços de pequena e média escala.
Quando as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, retomam momentaneamente a antiga vitalidade - e reivindicam uma qualidade urbana que sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade da segregação, do isolamento, da falta de serviços, da “imobilidade” de custo proibitivo e da circulação sem vida – esta cidade não corresponde ao sonho contemporâneo.
Paradoxalmente, o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que tem alma.

Querer e Poder


Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 304 - julho/2013

O general Ernesto Geisel, respondendo a uma pergunta sobre a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, foi claro: “Reclamam de eu não ter feito um plebiscito. Ia ser dispendioso – e eu não pretendia mudar minha decisão.” Já na condição de ex-presidente da República, nesse depoimento prestado a pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, publicado em livro, não titubeou em reafirmar a potência discricionária de sua decisão. Tudo muito simples: estava decidido, não tinha porque submeter suas conclusões à população.
Nestes quase 40 anos, muita coisa mudou em nosso país. Terminou a ditadura, já cinco presidentes eleitos decorrem da promulgação da ‘Constituição Cidadã’, a economia parece ter entrado nos eixos, a população urbana mais que dobrou. Apesar dessas condições, as decisões referentes às cidades parecem obedecer a uma metodologia ainda estacionada naqueles tempos do general.
Os principais investimentos, aqueles que efetivamente modificam a vida urbana, são em geral gestados e decididos – quando os há – em gabinetes distantes do cotidiano cidadão e impostos a todos como fatos consumados. Afinal, são ‘investimentos’: se não estiverem de acordo, outros lugares os quererão...
Ocupação, mobilidade, habitação, grandes equipamentos – todos são elementos centrais para o desenvolvimento urbano. Decisões sobre eles não são destituídas de importantes consequências para as cidades e os cidadãos.
Um exemplo de decisão discricionária no âmbito da ocupação do território vem do governo do Distrito Federal. Há alguns meses, contratou-se empresa de Cingapura para ‘projetar’ os próximos 50 anos de Brasília, à revelia de uma intensa manifestação coletiva contra esse verdadeiro crime de lesa cultura. Brasília, justamente a cidade que se consagrou como símbolo da capacidade de superação do povo brasileiro, é oferecida ao critério projetual de interesses estrangeiros, sem explicação.
Na mobilidade, decisões sobre traçados de linhas de metrô são tomadas em âmbito restrito – ou até mesmo contrariando planos licitados – sob ímpeto de estudos desconhecidos pela população ou por especialistas. É o caso do metrô no Rio de Janeiro, com a substituição da projetada Linha 4, licitada há anos, por uma extensão da linha 1, que ligará a zona Sul à Barra da Tijuca, com custo superior a R$ 8 bilhões.
Que consulta foi promovida em Belo Horizonte sobre a decisão de reposicionar o Centro Administrativo do estado? Localizado em área periférica da cidade, tem forte impacto sobre a expansão da região metropolitana e seus sistemas de mobilidade.
O programa federal Minha Casa, Minha Vida impõe-se a todas as cidades sem discriminação de clima, lugar, cultura. Mesmas tipologias construtivas são paginadas de norte a sul, de leste a oeste, por meio de conjuntos residenciais com milhares de unidades, implantados para além das franjas urbanas. Apesar da crítica continuada dos diversos agentes sociais e profissionais, persistem impávidos os governos e seus serviços financeiros e administrativos na decisão, desdobramento empobrecido de velhos modelos, já condenados, ao tempo do extinto Banco Nacional da Habitação.
A ausência de planejamento, a falta de projeto e a decisão discricionária são elementos de um processo perdulário que gasta exageradamente os dinheiros públicos, o território das cidades, a energia cidadã, a confiança na política e na democracia. A inflação e a ditadura certamente foram dois potentes agentes promotores da degradação da ideia de planejamento e de projeto no Brasil. Mas não é razoável que persistamos nesse caminho depois de tanto tempo de evidência de seus desastrosos resultados.

(POSSÍVEL DESTAQUE)
Os principais investimentos, aqueles que efetivamente modificam a vida urbana, são em geral gestados e decididos – quando os há – em gabinetes distantes do cotidiano cidadão

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A rua não quer apito


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 22/06/2013
Sérgio Magalhães

O General Geisel, respondendo a uma pergunta sobre a sua iniciativa de fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, foi claro: “Reclamam de eu não ter feito um plebiscito. Ia ser dispendioso – e eu não pretendia mudar minha decisão.”
Nesse depoimento prestado em 1994 a Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, pesquisadores do CPDOC da FGV, o ex-presidente não titubeou em reafirmar a potência discricionária de sua sentença. Simples assim: tinha decidido, não havia por que submeter sua decisão à população.
Mudou muito o país. Foi-se a ditadura, seis eleições decorreram da edição da Constituição, a economia entrou nos eixos, a população urbana triplicou. Contudo, as decisões referentes às cidades parecem obedecer a uma metodologia ainda daqueles tempos do general.
Investimentos importantes, de largas consequências para as cidades e os cidadãos, são gestados em gabinetes e impostos como fato consumado. Não se compõem em um quadro de planejamento. Logo, não explicitam critérios, tampouco alternativas; não  traduzem prioridades nem se dá transparência às escolhas. São instrumentos de realimentação do poder.
Sem planejamento, também os projetos são frutos discricionários de “oportunidades”, sejam elas reais ou fictícias, públicas ou privadas.
Assim se faz Brasil afora, agora apoiado em lei que permite licitar obra a partir do anteprojeto (ou seja, sem definições adequadas), o que implica, por óbvio, em multiplicar os custos e dividir a qualidade. A justificativa é poder atender os cronogramas exigidos pela Copa, mas a medida se aplica a qualquer obra pública.
Os bilionários estádios, novos ou reformados, estão nesse novo paradigma. As obras são inflacionadas não apenas pela própria inflação, mas, sobretudo, por tais métodos.
Sem planejamento e sem prioridades transparentes, nossas cidades seguem o rumo da inviabilização, tanto na qualidade do espaço urbano como nos serviços públicos não prestados ou mal prestados,  como, aliás, têm alertado o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e profissionais da área. Na mobilidade baseada no rodoviarismo, o roteiro já vencido constrói uma verdadeira tragédia cotidiana – onde o transporte coletivo de alto rendimento, sobre trilhos, é desconsiderado. Assim, nas grandes cidades os governos gastam 14 vezes mais recursos para o funcionamento do sistema de transporte individual do que para o de transporte coletivo, como informa o Relatório da ANTP de 2011.
Nessa prática discricionária não são os interesses do Estado que estão sendo servidos, como se alega; menos ainda o da população. O método de Geisel não nos serve.

A inflação e a ditadura certamente foram potentes promotoras da degradação da ideia de planejamento no Brasil. Não é razoável que tal consequência ainda persista.
A inexistência de planejamento, a falta de debate e a decisão discricionária são elementos estruturais de um processo predador dos dinheiros públicos, da qualidade urbana, da energia cidadã, da confiança na política e na democracia. 

SÉCULO 21, OU 20?


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 303 - junho/2013

Sérgio Magalhães

Duas são as paisagens culturais que hoje pontuam o território brasileiro: o “espigão”, no Brasil urbano; e a soja, no Brasil rural.
(Espigão –o edifício alto- e soja foram recentes pautas da mídia. O primeiro, em série de reportagens de O Globo, mostrando sua disseminação em cidades médias e grandes do país. A soja, por conta de sua avantajada produção que fica estacionada em caminhões ao longo de estradas congestionadas que demandam os portos, também congestionados.)
Ambas as paisagens são sinais de um país que cresce. Mas, para que não signifiquem uma chegada tardia ao século passado, é necessário um reequilíbrio compatível com as expectativas do século 21.
Na nossa contemporaneidade, firmam-se conceitos associados à nova compreensão sobre os limites do planeta, o bem estar geral a que precisamos corresponder.  Assume-se como indispensável o respeito ao lugar e às suas preexistências. O desperdício, seja de energia ou de meios, não é aceitável. O espaço é o da diversidade. O crescimento não pode se dar sobre tábula rasa, seja ambiental, cultural, social ou econômica.
Como vemos no panorama urbano brasileiro, a imagem ambiental das cidades cada vez mais é definida por altos edifícios com dezenas de andares –o “espigão”. Esse modelo vigora de norte a sul, de leste a oeste, e se torna homogeinizador da paisagem cultural, ainda que em situações de diversidade geográfica.
Tornou-se fácil construir um espigão. A tecnologia construtiva é de amplo domínio; os elevadores são relativamente baratos; os riscos econômicos são reduzidos e os recursos financeiros são facilitados através da venda em condomínio.
Nas cidades que passam agora pelo boom imobiliário, em geral, o espigão é erguido em local com escassez de infraestrutura sanitária, de mobilidade e de serviços públicos –situação, aliás, típica da maior parte das áreas urbanas. Erguido junto a residências e baixas construções, cria uma relação entre escalas que desqualifica o ambiente existente.  Os preços baixos dos terrenos permitem lucros proporcionais à altura da edificação. Assim, há estímulo para ampliar a produção.
Há estreito vínculo entre empreendedor imobiliário e prefeitura, que vê oportunidade de reforço de caixa com as aprovações –quando não se busca também uma ajuda às próximas eleições; ademais, na percepção popular, o edifício alto pode ser visto como signo de progresso.
  
Mas o poder público detém o monopólio da legislação urbanística no pressuposto de definir os volumes a edificar capazes de compor o melhor espaço urbano, tudo no interesse coletivo. Na medida em que negocia a altura dos edifícios a construir, admitindo mais andares mediante pagamento, transfere ao empresário aquela atribuição. Assim, não é mais o conceito de melhor configuração urbana que prevalece, mas o de maiores benefícios financeiros. Não é o espaço público que vige, mas o lote.
De certo modo, esse descompasso é uma contrafação à ideia constitucional que dá ao poder público o monopólio da legislação urbana, no interesse da composição do conjunto construído, em harmonia com o espaço público. E, embora possa estar apoiada em leis, nem por isso essa atitude passa a ser legítima.
A soja segue caminho semelhante. Vai ocupando terras das coxilhas do Rio Grande às matas da Amazônia, passando pelos pinheirais do Paraná e pelo cerrado do Centro Oeste. Tudo se uniformiza com complementos e corretivos químicos para fazerem a terra produzir – ainda que o sistema hídrico se banalize com os agrotóxicos. A grande escala se impõe e expulsa a diversidade, seja ambiental, seja produtiva.
Colhida a soja, chegar ao destino já é outra questão. Construído o espigão, circular pela cidade já é outro departamento.  
Pasteurizada a paisagem cultural, é o século 20 que nos acena. Para prosseguirmos rumo à contemporaneidade, precisamos dos ajustes que este nosso tempo nos sugere. A decisão é nossa.