sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Nem tudo que reluz é ouro

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 11/10/2014

Sérgio Magalhães

As últimas semanas foram ricas em cenas inesquecíveis na propaganda de TV. Destaco o ‘comercial’ do político de ficha controversa que se auto-proclama um lutador pela ética; ou a autoridade que recomenda o voto em candidato cheio de ruindade e o apresenta como ‘o melhor do país’.
Lembro ainda o protagonizado por atriz de grande credibilidade que exalta a vida em um condomínio fechado denominado “Ilha” – que não é cercada por água, mas ‘isolada’ da cidade.
São cenas em que a ficção assume-se como realidade e embaralha nosso acervo de valores.

Nas mesmas semanas, as eleições se desenrolaram passando ao largo da questão urbana. Em um país onde quase toda a população mora em cidades, é a realidade parecendo ficção.



Onde ficaram as dificuldades de mobilidade? A precariedade de moradia e de saneamento? A degradação dos espaços urbanos? A escassez dos serviços públicos? A insustentabilidade do modelo de expansão das cidades?

Quando algum desses temas é citado na propaganda política, fala-se em recursos financeiros ou em quantitativos; nada se diz sobre conceitos e qualidade dos investimentos.
O caso da mobilidade é exemplar: no Brasil urbano, embora o transporte coletivo seja o mais demandado pela população, os governos gastam 14 vezes mais em despesas relacionadas ao transporte individual do que ao transporte coletivo.

Também na habitação, seja com o Minha Casa Minha Vida ou com os condomínios tipo ‘ilhas’. A jornalista norte-americana Jane Jacobs reconhecia que apenas recursos não são suficientes. “Veja o que construímos com bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinqüência, piores que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são monumentos à monotonia; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isto não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.”
Esse desabafo de Jacobs é de 1961, em livro sobre a experiência norte-americana. Alguma semelhança com os modelos do finado BNH, que retornam fora de hora neste Brasil do século XXI?

O BNH (1964-86) financiou 4,4 milhões de domicílios e o MCMV (2009-14) financiou 1,5 milhão. Os números impressionam. Mas representam apenas 30% e 20%, respectivamente, das moradias construídas em cada período. Somando BNH, MCMV, CEF e todo o mercado imobiliário, financiou-se menos de ¼ dos 50 milhões de novos domicilios urbanos desde 1964. Contextualizados, o brilho diminui e não explicam a adoção de modelos falidos que criam guetos e induzem à expansão insustentável das cidades.

Contemporâneo de Jacobs, o historiador italiano Leonardo Benévolo também avaliava não haver determinismo entre crescimento econômico e melhora da cidade – mas interdependência. Para ele, a melhora urbana é um dos modos para se alcançar o equilibrio geral.

Tais conceitos explicitados na segunda metade do século passado não cairam no vazio. A experiência recente dos países mais desenvolvidos demonstra que a qualificação dos seus sistemas urbanos foi um dos esteios da melhora geral que experimentaram nas últimas décadas.

As boas cidades são os verdadeiros motores deste novo século.

Esperemos que nestes segundos turnos das eleições elas venham para o palco dos debates. Talvez a realidade não reluza tanto quanto a ficção sugere. Mas reconhecer os problemas é caminho para o seu enfrentamento.

GERAÇÃO 21: COMO RESPONDER?

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 317 - outubro/2014
Sérgio Magalhães
O Brasil vive um momento histórico onde, pela primeira vez, precisará enfrentar a questão urbana. A resposta terá implicações essenciais para o desenvolvimento, a equidade, o meio-ambiente e a própria democracia.
O sistema político foi surpreendido em 2013 pela força das ruas e considerou possível absorvê-las no âmbito das eleições de 2014. Pode surpreender-se outra vez. Os contornos imprevistos avançam além do embate partidário-eleitoral e pedem novos encaminhamentos. O cerne da questão é o modo como a população urbana tem sido (mal) tratada.
Até hoje, o aumento das cidades era visto como inevitável – quase uma força da natureza. Como a população crescia muito, justificavam-se todas as imprevidências, os erros de escolha, a falta de planejamento. Mas a base mudou. Agora, a realidade é a estabilidade demográfica. As cidades terão outras referências e os movimentos de 2013 sinalizam para essa direção.
Vivemos, porém, fenômeno social importante com largas consequências para a cidade: a redução do tamanho médio da família. Hoje, no Brasil, há três pessoas em cada domicilio, em média; mas, em uma geração, serão cerca de duas pessoas, como em países desenvolvidos. Isso significa que, sem a população crescer, é preciso aumentar em 50% o número de moradias, além de substituir as obsoletas, e prover novos equipamentos para as diversas funções da cidade e novas infraestruturas. É possível estimar que, em 25 anos, um outro Brasil urbano se somará ao Brasil urbano de hoje. Como fazê-lo?
Esta é uma agenda que implica mudança de paradigma urbanístico.
Se continuarmos no modelo atual, as cidades se expandirão para acolher as novas edificações e o farão em densidade demográfica cada vez mais baixa. Significa danos ambientais crescentes, infraestruturas sub-aproveitadas, transportes mais caros e mais demorados, perda de eficácia na prestação dos serviços públicos.
As exigências ambientais recomendam que a cidade não continue predatória de território. O rodoviarismo está condenado: a mobilidade precisará considerar os múltiplos modos e privilegiar redes de alta capacidade, como o metrô. A democracia política exigirá a universalização dos serviços públicos. Mas os recursos financeiros à disposição dos governos são limitados. Tudo isso é incompatível com cidades que se espraiam em densidades decrescentes – como ocorre hoje.
O Brasil precisará fazer esforço especial para trocar o modelo urbanístico. Não é fácil. Mas o momento é agora, quando a população para de crescer. Cada dia no modelo antigo torna a cidade mais extensa e menos densa, e mais distante sua democratização.
A cidade brasileira desta geração precisará se somar à cidade existente ficando onde está, sem se expandir e sem perder densidade. Além de necessário, isso é possível. Aproveitar os vazios urbanos e os equipamentos degradados, recuperar bairros inteiros, urbanizar assentamentos populares e oferecer terra a edificar, usando de modo correto os instrumentos legais, são algumas medidas que podem ajudar nessa tarefa.
É também uma agenda que exige novo paradigma na gestão pública. A cidade pede políticas públicas permanentes, não mais à mercê das idiossincrasias pessoais de governantes e dos interesses dos detentores de terras a valorizar. É tempo do planejamento compartilhado e de projetos consequentes.
Faz parte deste século 21 a compreensão sobre as vantagens da equidade, o respeito às razões do planeta e as virtudes da democracia política. Equidade, sustentabilidade e democracia são componentes essenciais do ideário contemporâneo. E as cidades, como maior artefato da cultura, se configuram em sintonia com o tempo.

A cidade é o lugar da política. A resposta da ‘geração 21’ nos dirá o bom caminho.