quinta-feira, 13 de março de 2014

Flagrância padrão Fifa

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 311 - janeiro-fevereiro/2014

Copa do Mundo no Brasil, novas manifestações, eleições. 2014 chega com renovadas esperanças – e muitas indagações. De todo modo, qual é o palco onde se desenrola esse espetáculo?
Mesmo que incerteza, instabilidade e insegurança sejam características contemporâneas – e já façam parte de nossa subjetividade – a ação coletiva se encena em espaço preciso: a cidade. Isto é, em ambientes que influem sobre o desempenho social, econômico e político do país. Não apenas em episódios agudos, como no caso das manifestações de rua de junho. Mas, sobretudo, na capacidade de estimularem (ou dificultarem) o fluxo de ideias, a liberdade de circulação, a oportunidade de empreender, entre outros atributos inerentes à vida em cidades.
É evidente o descompasso entre as exigências contemporâneas e as respostas das administrações de nossas cidades. 
Quando os manifestantes de junho pedem serviços públicos padrão Fifa, todos sabemos o que essa síntese quer dizer. Sabemos tão claramente que em poucos dias as mais altas esferas do Estado se mobilizaram para divulgar providências que visariam ao atendimento da demanda. Um pacto presidencial de cinco pontos foi proposto, dos quais dois são vinculáveis à questão urbana: (i) o da mobilidade e (ii) o de anticorrupção em contratos de obras públicas.
A mobilidade urbana parece ter entrado na pauta da mídia. Mas, passados meses, não se percebem desdobramentos oficiais: continuamos sem programa, sem planejamento e sem projetos.
O pacto anticorrupção em obras públicas vai mal. As leis de contratação de obras estão em reestudo no Congresso. Mas o relatório divulgado em dezembro no Senado é preocupante. Vejamos: a crítica das ruas foi quanto ao preço exorbitante e sempre crescente que os novos estádios padrão Fifa apresentam. Ocorre que foi uma lei específica para a Copa que permitiu que os estádios pudessem ser contratados sem projeto, a partir apenas de um anteprojeto, deixando-se o poder das definições à empreiteira – o que explica a multiplicação dos custos. E a proposta no Senado é estender essa lei a todas as obras públicas em todo o país.
É da boa prática internacional justamente a separação entre projeto e obra, tanto para garantir a qualidade quanto por razões econômicas e éticas. Ora, ampliar as ‘facilidades’ é abrir caminho para todo tipo de acordo.
O argumento do governo é que os projetos demoram e atrasam os cronogramas. Mas, a falta de projeto é reconhecidamente o mais importante fator de aumento de prazo e de custos em obras – sejam públicas ou privadas. O que falta é capacidade gerencial, administrativa e técnica, pois os governos desarticularam os serviços públicos correspondentes.
Acaba de ser anunciado que o governo federal utilizará dispositivo da mesma lei da Copa, chamado ‘contratação integrada’, para cumprir seu cronograma de construir 6 mil creches. Deixa-se ao empreiteiro a incumbência de “projetar, construir, fazer os testes e demais operações necessárias e suficientes para a entrega da obra”. Ou seja, é a exacerbação do problema ‘padrão Fifa’ travestido de ‘solução’.
A última novidade (O Globo, 01/01/14) é a ‘central de flagrância’ (assim mesmo). Constituída pela articulação de representações dos governos federal e estaduais, Judiciário e Ministério Público, visa dar pronto-atendimento policial-legal-judicial a eventuais flagrantes de violência em manifestações de rua. Imagina-se que, perto da Copa, as manifestações possam voltar e, portanto, é preciso coibir ações prejudiciais à ordem pública.
Enquanto isso, com vistas às eleições nacionais, o único esboço de programa presidencial até agora anunciado nomeia 12 diretrizes e nenhuma delas trata de cidades – onde vive a quase totalidade dos brasileiros.
O ano promete. Mas, por ora, feliz 2014 !

quinta-feira, 6 de março de 2014

Cadê a viga?

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 01/03/2014
Sérgio Magalhães
Desde antes do rádio que os assuntos do quotidiano são tratados nas marchinhas de carnaval com a irreverência e o bom humor característicos do Rio.
Depois de um período difícil, elas voltaram com força. Foram reapresentadas em musical de grande sucesso, “Sassaricando”, assinado por Rosa Maria Araújo e Sérgio Cabral.
Os concursos da Fundição Progresso são um momento de exaltação desse gênero bem carioca. Centenas de compositores do Brasil todo apresentam suas obras, que, após seleção, são defendidas em público para escolha de um júri.
O que mobiliza tanta gente? Por que esse sucesso?
Não há mágica: quem promove o concurso deseja a melhor música; quem participa, deseja que sua obra seja gravada e divulgada.
Assim também ocorre em outras áreas da cultura.
Na arquitetura, edifícios públicos e obras que buscam a qualidade são escolhidos em concursos de projetos nos principais países. São exemplos o Centro Beaubourg, em Paris; o novo Marco Zero, em Nova York; a Praça Potsdamer, em Berlim.
A UNESCO fez recomendação (1978) para que os países membros adotassem o concurso como forma de licitação mais adequada para a contratação de projetos de Arquitetura e Urbanismo. O Brasil subscreveu esse documento.  A lei federal 8.666/93 incorporou o concurso como uma modalidade de licitação.
No entanto, são poucas as obras públicas escolhidas por concurso de projetos no nosso país. O que deveria ser a regra, é a exceção. Contudo, temos bons exemplos da experiência de concurso, como é o caso do Vale do Anhangabaú, em São Paulo; o Teatro Municipal e o Monumento dos Pracinhas, no Rio. Lembremos que Brasília foi escolhida por concurso público, vencido por Lucio Costa. O programa Favela-Bairro, o Rio-Cidade e, recentemente, o Morar Carioca e instalações para os Jogos de 2016, no Rio, também o foram. Ano passado, a Estação Antártica do Brasil foi escolhida por concurso público promovido pela Marinha. Enfim, é um procedimento que não é novo e que abrange diferentes escalas.
Embora o concurso envolva o trabalho de inúmeras equipes, e apenas uma seja a vencedora, é modalidade prestigiada pelos arquitetos no mundo todo, por qualificar o ambiente urbano e por ser uma oportunidade de cotejo entre as respostas oferecidas pelas equipes. É um momento de pesquisa e de reflexão profissionais – e assim avança a cultura.
Neste Brasil que se constrói com enorme pujança e velocidade precisamos buscar que cada nova obra seja um instrumento para melhorar a cidade. Não apenas a obra excepcional, mas toda obra pública. O concurso é o melhor meio para que a escolha seja bem sucedida.
Infelizmente, ainda há muita incompreensão, como acaba de ser divulgado em concurso para prédio anexo ao BNDES, no Rio, onde o Edital prevê que o arquiteto vencedor do concurso entregue o seu Anteprojeto para que seja desenvolvido por outra equipe, abrindo mão, inclusive, de seus direitos autorais. Ora, o projeto é autoral, tem unicidade, não pode ser fatiado. É claramente um contrassenso – e talvez uma ilegalidade.
O que diriam Braguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, João Roberto Kelly se, vitoriosas suas marchinhas, outros nelas fizessem alterações?
Neste ano, o concurso da Fundição Progresso escolheu “Cadê a viga?”. Será que os compositores Cássio e Rita Tucunduva teriam inscrito sua marchinha se eles não a pudessem gravar ou se ela pudesse ser modificada por outros?

Por falar nisso: prefeito, e o Morar Carioca? Cadê?