sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Nem tudo que reluz é ouro

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 11/10/2014

Sérgio Magalhães

As últimas semanas foram ricas em cenas inesquecíveis na propaganda de TV. Destaco o ‘comercial’ do político de ficha controversa que se auto-proclama um lutador pela ética; ou a autoridade que recomenda o voto em candidato cheio de ruindade e o apresenta como ‘o melhor do país’.
Lembro ainda o protagonizado por atriz de grande credibilidade que exalta a vida em um condomínio fechado denominado “Ilha” – que não é cercada por água, mas ‘isolada’ da cidade.
São cenas em que a ficção assume-se como realidade e embaralha nosso acervo de valores.

Nas mesmas semanas, as eleições se desenrolaram passando ao largo da questão urbana. Em um país onde quase toda a população mora em cidades, é a realidade parecendo ficção.



Onde ficaram as dificuldades de mobilidade? A precariedade de moradia e de saneamento? A degradação dos espaços urbanos? A escassez dos serviços públicos? A insustentabilidade do modelo de expansão das cidades?

Quando algum desses temas é citado na propaganda política, fala-se em recursos financeiros ou em quantitativos; nada se diz sobre conceitos e qualidade dos investimentos.
O caso da mobilidade é exemplar: no Brasil urbano, embora o transporte coletivo seja o mais demandado pela população, os governos gastam 14 vezes mais em despesas relacionadas ao transporte individual do que ao transporte coletivo.

Também na habitação, seja com o Minha Casa Minha Vida ou com os condomínios tipo ‘ilhas’. A jornalista norte-americana Jane Jacobs reconhecia que apenas recursos não são suficientes. “Veja o que construímos com bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinqüência, piores que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são monumentos à monotonia; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isto não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.”
Esse desabafo de Jacobs é de 1961, em livro sobre a experiência norte-americana. Alguma semelhança com os modelos do finado BNH, que retornam fora de hora neste Brasil do século XXI?

O BNH (1964-86) financiou 4,4 milhões de domicílios e o MCMV (2009-14) financiou 1,5 milhão. Os números impressionam. Mas representam apenas 30% e 20%, respectivamente, das moradias construídas em cada período. Somando BNH, MCMV, CEF e todo o mercado imobiliário, financiou-se menos de ¼ dos 50 milhões de novos domicilios urbanos desde 1964. Contextualizados, o brilho diminui e não explicam a adoção de modelos falidos que criam guetos e induzem à expansão insustentável das cidades.

Contemporâneo de Jacobs, o historiador italiano Leonardo Benévolo também avaliava não haver determinismo entre crescimento econômico e melhora da cidade – mas interdependência. Para ele, a melhora urbana é um dos modos para se alcançar o equilibrio geral.

Tais conceitos explicitados na segunda metade do século passado não cairam no vazio. A experiência recente dos países mais desenvolvidos demonstra que a qualificação dos seus sistemas urbanos foi um dos esteios da melhora geral que experimentaram nas últimas décadas.

As boas cidades são os verdadeiros motores deste novo século.

Esperemos que nestes segundos turnos das eleições elas venham para o palco dos debates. Talvez a realidade não reluza tanto quanto a ficção sugere. Mas reconhecer os problemas é caminho para o seu enfrentamento.

GERAÇÃO 21: COMO RESPONDER?

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 317 - outubro/2014
Sérgio Magalhães
O Brasil vive um momento histórico onde, pela primeira vez, precisará enfrentar a questão urbana. A resposta terá implicações essenciais para o desenvolvimento, a equidade, o meio-ambiente e a própria democracia.
O sistema político foi surpreendido em 2013 pela força das ruas e considerou possível absorvê-las no âmbito das eleições de 2014. Pode surpreender-se outra vez. Os contornos imprevistos avançam além do embate partidário-eleitoral e pedem novos encaminhamentos. O cerne da questão é o modo como a população urbana tem sido (mal) tratada.
Até hoje, o aumento das cidades era visto como inevitável – quase uma força da natureza. Como a população crescia muito, justificavam-se todas as imprevidências, os erros de escolha, a falta de planejamento. Mas a base mudou. Agora, a realidade é a estabilidade demográfica. As cidades terão outras referências e os movimentos de 2013 sinalizam para essa direção.
Vivemos, porém, fenômeno social importante com largas consequências para a cidade: a redução do tamanho médio da família. Hoje, no Brasil, há três pessoas em cada domicilio, em média; mas, em uma geração, serão cerca de duas pessoas, como em países desenvolvidos. Isso significa que, sem a população crescer, é preciso aumentar em 50% o número de moradias, além de substituir as obsoletas, e prover novos equipamentos para as diversas funções da cidade e novas infraestruturas. É possível estimar que, em 25 anos, um outro Brasil urbano se somará ao Brasil urbano de hoje. Como fazê-lo?
Esta é uma agenda que implica mudança de paradigma urbanístico.
Se continuarmos no modelo atual, as cidades se expandirão para acolher as novas edificações e o farão em densidade demográfica cada vez mais baixa. Significa danos ambientais crescentes, infraestruturas sub-aproveitadas, transportes mais caros e mais demorados, perda de eficácia na prestação dos serviços públicos.
As exigências ambientais recomendam que a cidade não continue predatória de território. O rodoviarismo está condenado: a mobilidade precisará considerar os múltiplos modos e privilegiar redes de alta capacidade, como o metrô. A democracia política exigirá a universalização dos serviços públicos. Mas os recursos financeiros à disposição dos governos são limitados. Tudo isso é incompatível com cidades que se espraiam em densidades decrescentes – como ocorre hoje.
O Brasil precisará fazer esforço especial para trocar o modelo urbanístico. Não é fácil. Mas o momento é agora, quando a população para de crescer. Cada dia no modelo antigo torna a cidade mais extensa e menos densa, e mais distante sua democratização.
A cidade brasileira desta geração precisará se somar à cidade existente ficando onde está, sem se expandir e sem perder densidade. Além de necessário, isso é possível. Aproveitar os vazios urbanos e os equipamentos degradados, recuperar bairros inteiros, urbanizar assentamentos populares e oferecer terra a edificar, usando de modo correto os instrumentos legais, são algumas medidas que podem ajudar nessa tarefa.
É também uma agenda que exige novo paradigma na gestão pública. A cidade pede políticas públicas permanentes, não mais à mercê das idiossincrasias pessoais de governantes e dos interesses dos detentores de terras a valorizar. É tempo do planejamento compartilhado e de projetos consequentes.
Faz parte deste século 21 a compreensão sobre as vantagens da equidade, o respeito às razões do planeta e as virtudes da democracia política. Equidade, sustentabilidade e democracia são componentes essenciais do ideário contemporâneo. E as cidades, como maior artefato da cultura, se configuram em sintonia com o tempo.

A cidade é o lugar da política. A resposta da ‘geração 21’ nos dirá o bom caminho.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A soma será melhor

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 13/09/2014

Sérgio Magalhães

O Brasil se encontra ante um desafio inédito. A resposta terá implicações essenciais para o desenvolvimento, a equidade, o meio-ambiente e para a própria democracia.
O sistema político foi surpreendido em 2013 pela força das ruas e pensou absorve-las no âmbito das eleições de 2014. Pode surpreender-se outra vez. Os contornos imprevistos avançam além do embate eleitoral e pedem novos encaminhamentos. O cerne da questão é o modo como a população urbana tem sido (mal) tratada.
O Brasil viveu longo período de crescimento demográfico e de urbanização da população. A expansão das cidades era vista como natural. E os problemas urbanos como típicos do crescimento, justificando as imprevidências e a falta de planejamento. Construímos importante sistema de cidades, mas metade sem saneamento, péssimo transporte, moradias precárias. Contudo, a sensação de futuro se preservava.
Agora, quando a população pára de crescer, a base muda. As cidades terão outras referências e os movimentos de 2013 sinalizam nesse sentido. Seria o tempo de qualificar as cidades.
Vivemos, porém, fenômeno social que dobrará as cidades atuais. Hoje, no país, vivem três pessoas em cada domicilio urbano; em uma geração, serão duas pessoas. Sem crescer a população, isso implica aumentar em 50% o número de moradias, a que se adicionará a substituição das obsoletas, novos equipamentos, novas infraestruturas e serviços exigidos pela dinâmica geral. É possível estimar que, em vinte e cinco anos, um outro Brasil urbano se somará ao Brasil urbano de hoje.
Mas o sistema de cidades está dado, pouco mudará. Se persistirmos no modelo urbanístico atual, rodoviarista e predador de territórios, as cidades continuarão se expandindo. Expandir sem aumento de população significa o esvaziamento da cidade nas áreas hoje consolidadas. Isto é, infraestruturas sub aproveitadas, transportes mais caros e mais demorados. Sobretudo, a inviabilidade dos serviços públicos pelos altos custos. Ou seja, o aumento da desigualdade.
Como fazer com que a cidade universalize os serviços públicos, qualifique os espaços comuns, garanta a mobilidade adequada? Como alcançar a boa cidade, condição para o desenvolvimento econômico e social?
O Brasil precisará construir uma agenda especial para trocar o modelo urbanístico. Não é fácil, é necessário. Cada dia no modelo antigo, mais extensa, menos densa e menos bem servida fica a cidade.
A nova cidade precisará se somar à cidade existente ficando onde está. Ao invés de dispersar, concentrar e preservar a população. O aproveitamento dos vazios urbanos e equipamentos degradados, bairros inteiros a recuperar, a urbanização dos assentamentos populares e redes de transporte de alta capacidade são algumas medidas nesse sentido.
É uma agenda que pede nova gestão pública, planejamento compartilhado e projetos consequentes. São eles que desenharão a cidade democrática.
Faz parte deste século 21 a compreensão sobre as vantagens da equidade, o respeito às razões do planeta e as virtudes da democracia – componentes essenciais do ideário contemporâneo. As cidades, maior artefato da cultura, se desenham sintonizadas no tempo.

O desafio é inédito porque o país pouco cuidou do seu espaço urbano. Está na hora. Neste mais um Brasil urbano, a soma há de ser melhor do que as parcelas.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Morar Bem - "A arquitetura de agora valoriza o ambiente social"


De mãos dadas

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 16/08/2014

Sérgio Magalhães

A brutal transformação que as grandes cidades experimentaram ao longo do século XX teve dois componentes tecnológicos essenciais: o elevador e o automóvel. Eles mudaram a imagem ambiental urbana e produziram dois estereótipos: a cidade alta e a cidade expandida.
Nova York consagrou-se como cidade dos arranha-céus, mas não do automóvel; Los Angeles, como uma cidade sem limites sustentada pelo carro. No Brasil, em geral, as cidades foram muito receptivas ao edifício alto e modificaram até mesmo suas linhas estruturais pelo privilégio ao rodoviarismo.
Agora, na África do Sul, por ocasião da Assembléia Geral da União Internacional de Arquitetos, em que o Rio foi escolhida como sede do Congresso Mundial de Arquitetos de 2020, concorrendo com Paris e com Melbourne (Austrália), ficaram claros distintos modelos de cidades.
Paris, a metrópole reconfigurada no século XIX, preservou suas características ambientais centrais e cresceu para fora do núcleo apoiada no transporte de alta capacidade. Valoriza o continuum construído e o espaço público.
Melbourne, cidade de grande expansão a partir dos anos 1950, moldou-se pelo automóvel e pela edificação autônoma em relação ao espaço público. Valoriza o edifício isolado e o ‘não lugar’.
Rio, a cidade múltipla, diversa, não se contém nos modelos, e mantém certa ambiguidade nas escolhas que faz. Rejeitou o espigão mas estimula o aumento de volumes a construir. Sua vida é no espaço público – mas será que o valoriza?
Contudo, não são apenas os componentes tecnológicos que conformam as cidades.
A sociedade se molda na cidade e é nela representada. A aparente dissociação entre valores sócio-políticos e a materialidade urbana certamente é ilusória. Isto é, na cidade, a forma e o desejo andam de mãos dadas.
Se o que vemos no nosso quotidiano urbano indigna nossa concepção de civilidade democrática, tal dissintonia há de sinalizar ou um alheamento nosso em relação aos elementos conformadores da cidade ou uma hipervalorização de nossas expectativas destituída de consequências na ação política.
Daí, a importância do conhecimento e do debate sobre os caminhos escolhidos para o nosso desenvolvimento urbano-arquitetônico.
Com a escolha do Brasil e do Rio como sede do maior evento de arquitetura do mundo, o Congresso UIA 2020, sob o tema “Todos os mundos; um só mundo; arquitetura 21”, pelos próximos seis anos teremos a possibilidade de ampliar a reflexão sobre nossas cidades.
Elas ainda são fontes de desigualdade, a ser combatida. Lugares do conflito, são instrumentos da educação para o convívio entre os diferentes e para a tolerância, a ser valorizada. A dimensão espacial desses propósitos é a arquitetura.
A cidade do desejo contemporâneo é acolhedora e inclusiva e se desenha voltada para as pessoas – para todos os homens, mulheres, crianças e idosos, com capacidade de movimento ou com dificuldades para tanto, pedestres ou não, de todas as etnias, religiões e talentos. Os lugares são compartilhados e os serviços urbanos são universalizados. É uma cidade não predatória de território e do ambiente.

A forma urbana que corresponde a tal desejo não se esgota em um modelo.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Vitória da Copa

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 316 - julho/2014
Sérgio Magalhães

Escrevo às vésperas da Copa do Mundo, na expectativa de vitória brasileira e da realização de um grande evento em todo o país. Também escrevo às voltas com greves, ruas tomadas indistintamente por manifestações de portes variados, cidades à beira de um ataque de nervos. Como estaremos quando esta revista estiver nas bancas?
O processo de urbanização vivido pelo país desde meados do século passado resultou na quadruplicação da população urbana e na promoção de vinte metrópoles, com duas megacidades. As melhoras nos índices sociais, de saúde, mortalidade infantil, longevidade, alfabetização, educação, entre outros, tiveram na cidade o seu suporte essencial e, em processo biunívoco, deram força ao crescimento urbano.
O processo político também foi vertiginoso. Superada a ditadura, o país implantou uma democracia consistente, venceu a instabilidade financeira-inflacionária, promoveu a melhora econômica de milhões de brasileiros e reduziu a miséria. Estamos nos encaminhando para a sétima eleição geral desde a Constituição de 1988.
Contudo, há uma sensação geral de desconforto que faz com que inclusive as grandes conquistas estejam sob dúvida. Parece haver um consenso: a vida urbana tem se deteriorado muito nos últimos tempos.
Dificuldades na mobilidade, aumento da violência, ausência de serviços públicos ou ineficiência na sua prestação, entre outros, são temas do quotidiano da imensa maioria dos brasileiros, em especial nas grandes cidades. E este panorama não se coaduna com a ideia de que o Brasil é um novo fenômeno mundial, a sétima economia do mundo, um país rico.
Onde está situado o descompasso?
A Copa do Mundo, assim como os Jogos Olímpicos, certamente não são uma panaceia para a superação dos nossos problemas. Porém atuam como potencializadores de esforços e de recursos que estariam dispersos ou sequer seriam disponíveis. Mas, justamente por se configurarem como um momento preciso, uma data específica, é que conseguem a mobilização capaz de acelerar processos ou propor novos desafios.
Artigo assinado pelo presidente do Tribunal de Contas da União, publicado em O Globo em 12 de junho, afirma que apenas 43% das obras de mobilidade urbana projetadas como legado da Copa ficaram prontas. Diz o TCU que “o Brasil precisa planejar melhor” e que a instituição “está engajada em um projeto de Estado para pensar o país a longo prazo”.
Assim, quando não se alcançam as metas elencadas e as promessas não se materializam, põem-se à luz muitas das dificuldades estruturais ao desenvolvimento. E, entre estas, encontra-se o descompasso entre as exigências do sistema urbano brasileiro e a capacidade do Estado enfrentar os desafios urbanos contemporâneos.
O Estado brasileiro cresceu muito nas últimas décadas. Mas ainda não atentou para a necessidade de estruturar, nos três níveis de governo, um sistema de Planejamento que seja compatível com os avanços políticos alcançados com a democratização. Nós fomos capazes de construir um importante, complexo, diverso e rico sistema de cidades. Mas nesse processo também se promoveu um enorme passivo sócio-ambiental, crescente desigualdade intra-urbana e escassez na prestação dos serviços públicos urbanos.
As coisas ficaram mais complexas e a discricionariedade de bons e honestos governantes não é mais suficiente. Os problemas urbanos não se resolverão por mágica, por promessa ou apenas por “vontade política”. Nossas cidades precisam de políticas públicas consistentes, implantadas com continuidade, de amplo conhecimento, que garantam a todo cidadão o pleno exercício do Direito à Cidade.

Vencido o mês do futebol, espero que o Brasil tenha sido vitorioso. Se possível, também nas quatro linhas. Mas, de qualquer modo, sairá desta Copa do Mundo um país mais atento às dificuldades de suas cidades.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Está valendo o jogo?

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 21/06/2014
Sérgio Magalhães
Acabada a 2ª Guerra Mundial, Jean Paul Sartre visita Nova York pela primeira vez. À procura de uma imagem urbana reconhecível, que não encontra, ele se sente perdido entre ruas retas. Para ele, a cidade não tem a mesma “natureza” da sua Paris.
Mas a Paris que Sartre naturalizava era resultante das obras promovidas em meados do século XIX e que então causaram estranhamento ao poeta Charles Baudelaire: “A forma de uma cidade / muda mais rápido – ai de mim – / que o coração de um mortal”.
Agora, século XXI, a atriz Fernanda Torres sofre com perdas afetivo-arquitetônicas em seu bairro, como o anunciado fechamento do Cinema Leblon. “Devia haver um decreto para impedir que, ao crescerem, as cidades deixem de ser o que são”, sugere.
Sartre, Baudelaire e Fernanda sintetizam sensações de desconforto ante a perda de referências espaciais.
Embora saibamos que toda cidade é sempre outra, ainda que a forma seja estável, pois o uso, as pessoas e os sentimentos são cambiantes, mesmo assim a relação com o ambiente urbano constrói a identidade cidadã e a noção de pertencimento à cidade. Mudar a cidade, portanto, não é ação destituída de consequências importantes para as pessoas. E, por isso mesmo, precisa ser tratada também na dimensão que interessa ao cidadão e à memória coletiva.
Em nosso arcabouço jurídico, o Estado tem o monopólio de regular o volume e o uso das edificações. O que legitima tal privilégio é a busca pela forma urbana que melhor possa corresponder à ideia de uma boa cidade. A lei expressaria esse caminho. No entanto, o poder público tem abstraído essa responsabilidade, priorizando legislar sobre o aproveitamento imobiliário dos lotes através de índices genéricos que não consideram as proporções dos edifícios entre si e com a cidade. Se, de fato, buscasse o melhor ambiente, o Estado não deveria “vender” licenças para construir além do permitido pela lei, o que tem sido feito crescentemente. Com isso, a imagem ambiental da cidade, na prática, é desenhada pela propriedade fundiária.
Abre-se uma luta inglória entre o interesse do negócio imobiliário e as referências coletivas e cidadãs. Parece ser o caso do Cinema Leblon.
A lei protege o edifício e o seu uso como cinema. Mas a empresa proprietária do imóvel e do cinema afirma que o uso só será possível se for construído um edifício comercial no terreno. O lucro imobiliário constituirá um fundo para manter o cinema? Essa equação não está explicada.
O que se percebe é que a função cinema está sendo utilizada como elemento de troca para permitir que o tombamento do imóvel seja “flexibilizado”. Fica o cinema, mas não fica o edifício tombado. Ou seja, entre preservar a referência de uso e a referência espacial, opta-se pela primeira.
Essa é uma resposta que privilegia um aspecto da construção da memória coletiva em detrimento de outro elemento dela constituinte.

Em tempos de Copa, toda esperança pode mudar em segundos. Vimos agora como ocorreu com a seleção campeã do mundo de 2010. As regras assim o definiram. Mas, no caso da cidade, qual o jogo que vale?

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Nada de resposta única


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 315 - junho/2014
Sérgio Magalhães

Os movimentos populares por moradia apresentaram intensa mobilização nas últimas semanas em diversas cidades do país. A crise da habitação, porém, não se resolve com a construção de moradia. Na cidade contemporânea, habitar envolve uma multiplicidade de condições – a casa é apenas uma delas. Enfrentar o problema habitacional pressupõe tratar a questão urbana de modo abrangente: na infraestrutura, na mobilidade, nos serviços públicos, no espaço público, nos equipamentos urbanos e, obviamente, no abrigo.
Contudo, nossas políticas públicas, quando existem, são sempre setoriais. Os gestores públicos enfrentam cada problema com o que lhe parece mais objetivo. Isso, porém, tende a conduzir a equívocos reiterados, como se dá na moradia popular.
No Brasil, há décadas, os governos insistem, como política de habitação, na construção da moradia utilizando o modelo dos conjuntos residenciais. A experiência demonstra um duplo fracasso dessa política: (i) na tentativa governamental de ter exclusividade na promoção habitacional popular; e (ii) na adoção de apenas uma modalidade, o conjunto residencial. Com isso, a produção de unidades é muito inferior à demanda, enquanto se amplia o número de moradias erguidas pelas famílias nas condições mais precárias. E vende-se a ilusão de que estamos enfrentando o problema da moradia popular.
Não há resposta única para um problema tão amplo. É a soma de respostas, pequenas e grandes, que poderá enfrentar a questão.
Entre elas está a qualificação do imenso patrimônio econômico, social e cultural já gerado pelo povo brasileiro na produção de suas moradias, muitas vezes mais bem inseridas no contexto urbano do que as dos programas oficiais. A urbanização desses assentamentos populares, em geral carentes de infraestrutura e equipamentos que somente o esforço coletivo pode prover, é uma resposta essencial.
Bairros bem localizados, mas hoje degradados, podem recuperar sua vitalidade com estímulos à produção nova e com melhor tratamento dos espaços públicos e dos serviços. É o caso de muitos bairros centrais de nossas cidades. No Rio, São Cristóvão, Benfica e muitos outros são excelentes lugares habitacionais à espera de política de recuperação. Imóveis mais antigos também oferecem uma infinidade de oportunidades de aproveitamento para a população de renda baixa e média, em especial para o aluguel social, desde que se trabalhe de maneira integrada com financiamento dirigido para a restauração desse patrimônio.
A valorização imobiliária, em geral, tem sido onerosa para as famílias que pagam aluguel, o que pode levar à sua expulsão para áreas periféricas. É um tema complexo. Políticas de moradia para aluguel vinculadas ao crédito para novas habitações, onde parcelas sejam necessariamente destinadas a famílias de renda mais baixa, têm sido testadas em diversos países com resultados satisfatórios.
Os financiamentos habitacionais estão dirigidos prioritariamente para governos e empreiteiros e é por meio deles que a família tem acesso ao bem. Com isso, prevalece o interesse comercial do construtor na escolha do lugar, da tipologia e da qualidade construtiva. A família precisa ter crédito independente – não pode ser um repasse do promotor – e deve poder escolher onde morar e em que condições.
Enfim, o programa federal Minha Casa Minha Vida, se deixar de ser visto como a única resposta para a crise de moradia popular, poderá prestar melhores serviços ao desenvolvimento social e urbano. Certamente estará mais bem inserido na cidade e com melhor qualidade projetual e construtiva.

O problema habitacional é do tamanho do Brasil urbano. Ele deve ter muitíssimas respostas.

São outros quinhentos


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 25/05/2014
Sérgio Magalhães

Passando por um mergulhão recém inaugurado, comentou comigo o taxista em Brasília: “não entendo o pessoal que reclama de gastos com obras da Copa; fosse na Alemanha, que tem tudo, tá bem; mas aqui, que não tem nada?”
De fato, se considerarmos o todo de cada cidade, essa avaliação tem o seu valor.
Brasília, por exemplo. O Plano Piloto, a região do Distrito Federal sob desenho de Lucio Costa, tem qualidade ímpar, com suas superquadras, paisagismo magnífico, edifícios públicos de reconhecimento mundial, enfim, é uma “civitas” e uma “urbes”, como queria o seu autor. Mas no PP moram menos de trezentos mil habitantes enquanto que na Grande Brasília já são mais de três milhões. Nas áreas satélites ao Plano, a realidade é outra: há falta de infraestrutura, de transporte, de arborização e de serviços públicos.
É uma realidade comum às cidades brasileiras, nas quais a maior porção é composta por uma ocupação difusa com urbanização precária e grande escassez de serviços públicos. Tem razão o taxista: falta muita coisa na cidade. A obra pública é indispensável.
Os governos focam na obra o seu objeto de desejo. Querem obra (não necessariamente obra pronta...). E, paradoxalmente, não se preocupam em planeja-las.
No país, os incipientes sistemas públicos de planejamento foram desmobilizados, seus quadros funcionais são mínimos. Os governos passaram a se apoiar em equipes comissionadas, que não lhes dão o suporte da pesquisa e da reflexão.
Querendo abstrair a carência de planejamento e de projetos, sem os elaborar, o governo federal editou um regime especial de licitação de obras públicas, o RDC, com o qual as empreiteiras são contratadas mesmo sem projeto, o que vale para as obras da Copa e do PAC. Reduz-se o prazo para contratação do construtor, não necessariamente o das obras; sem projeto, as obras têm preço e qualidade à conveniência do interesse comercial da empreiteira. Não é um bom legado, como nos diz o sentimento das ruas. Felizmente, a generalização desse regime para todas as obras públicas, em todos os níveis de governo, que chegou a ser proposta no Congresso, foi rejeitada pelo Senado esta semana.
O planejamento da ordenação do território e das obras públicas correspondentes é função de Estado e pede continuidade. Agindo sem planejamento, na emoção da premência, os governos aumentam as chances de erro - no custo, na qualidade e nos prazos. Erram também na avaliação das prioridades, o que é apontado por muitos brasileiros que se manifestam em relação às obras da Copa.
Lá na Alemanha, que tem tudo, por certo cada obra pública é planejada, discutida com os cidadãos, avaliadas possibilidades e custos. O governo contrata projetos completos e depois é que contrata a construção.
Aqui, onde falta tanto, mais necessário seria um Estado preparado para definir investimentos de alto rendimento social. A desigualdade intra-urbana, que se resume na expressão do taxista, “aqui, que não tem nada”, é um dos mais prementes desafios da cidade contemporânea. A construção da consciência coletiva por cidades menos desiguais, esse sim, talvez possa ser um dos melhores legados da Copa.
Uma das lições do futebol é que o improviso às vezes dá certo no campo. Nas obras, fica mais caro. Na Copa, são outros quinhentos. Mas, por enquanto, vamos torcer!

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Condição Necessária

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 314 - maio/2014

Irônico paradoxo. Um dos assuntos mais presentes na mídia brasileira é o das favelas. Não obstante, é tema que não figura no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Estão em favelas perto de 10% dos domicílios urbanos brasileiros; em São Paulo e no Rio de Janeiro alcançam mais de 20% dos domicílios dessas cidades.
Embora se constitua como uma tipologia típica, onde predominam as moradias produzidas por auto-construção e na qual o espaço público é, em geral, mal definido, hoje muitas vezes a favela é tratada como o genérico de todo assentamento irregular, inclusive os loteamentos populares. De certo modo esse entendimento corresponde à realidade, pois favelas e loteamentos populares indistintamente em geral são lugares com déficit de infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, com moradias construídas segundo as possibilidades das famílias – do jeito precário que a falta de condições financeiras permite.
Assim, essas duas tipologias associadas constituem a maior parte das cidades brasileiras. Abrigam mais da metade das moradias e não contam com as condições urbanísticas essenciais à vida contemporânea.
Pode-se afirmar que, no quadro das cidades brasileiras, há um enorme déficit de urbanização e uma grande escassez de serviços públicos, o que muitos chamam por ausência de Estado. 
Mas, ao invés de reconhecer o esforço que as famílias pobres já fizeram em busca de sua inserção na sociedade urbana, tratar de suprir as infraestruturas e garantir os serviços públicos nesses assentamentos populares, o Estado volta seu interesse quase que exclusivamente para a construção de conjuntos residenciais. Simultaneamente, ignora a realidade da maioria e sinaliza com um modelo habitacional que não pode universalizar. Ainda, ao abandonar à própria sorte partes importantes das cidades, o Estado permite que elas sejam tomadas por forças da anomia e por interesses marginais, que impõem regras próprias às populações submetidas – para além da dominação territorial armada. A Constituição brasileira não vige nesses territórios.
Seja no tempo dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (anos 1940-1950), ou do BNH (anos 1960-1980) ou, ainda, do programa Minha Casa, Minha Vida (desde 2009), o modelo habitacional a que o Estado tem se dedicado é ineficiente mesmo tratando-se apenas da produção de moradia. Historicamente, esse modelo produziu menos do que um quinto dos domicílios urbanos. Até mesmo nos momentos de grande prioridade é largamente insuficiente.
Veja-se o caso do Programa MCMV. Anuncia ter construído 1,5 milhão de domicílios desde 2009. Nesse mesmo período, o povo brasileiro construiu mais de 7,5 milhões de residências. Ainda que se considere alcançar a meta de 3 milhões de domicílios até 2015, ainda assim a contribuição do MCMV – importante, não há dúvida – não chegará a 40% da produção de domicílios urbanos brasileiros no período. Ou seja, mais de 60% dos domicílios continuarão sendo produzidos na precariedade e na irregularidade das favelas e dos loteamentos populares.
Estimular a produção de moradia em bases regulares, legais, permanentes, é uma política necessária, indispensável, mas que precisa incorporar outros modelos que não apenas a construção de conjuntos residenciais. A expansão do crédito imobiliário diretamente às famílias é uma alternativa desejável.

Mas, de qualquer modo, não é possível que o país persista na ausência de políticas públicas de urbanização de favelas e loteamentos populares com a correspondente universalização dos serviços públicos. A incorporação desses assentamentos à cidade contemporânea – onde se garanta às suas populações a proteção da Constituição – é uma condição para o desenvolvimento brasileiro. Sobretudo, é um direito cidadão e uma exigência democrática.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Licitação de obras públicas deve ser simplificada? Não. - Atalho para malfeitos -

Sérgio Magalhães

Nós estamos satisfeitos com as obras dos estádios para a Copa? Estão no prazo? Estão com custos conhecidos? Estamos contentes com as obras de infraestrutura prometidas? Estão bem feitas? E as obras do PAC?
Pois saibamos que foram contratadas por uma lei de exceção – o tal RDC. Agora, quer-se estender a todas as obras públicas, sejam municipais, estaduais ou federais, o mesmo regime. O argumento: precisa simplificar a licitação.
O limite da simplificação é o gestor público chamar o empreiteiro seu amigo e lhe dizer: “Faça essa obra. Eu não sei bem o que eu quero, mas você pode começar. Meu povo garante os dinheiros.”
Será fantasia?
Nas décadas de inflação era difícil superar a lógica da premência: qualquer coisa agora é melhor do que nada amanhã.  Os incipientes sistemas públicos de planejamento e de gerenciamento de obras foram esvaziados.
Com a estabilidade e o crescimento econômico afloraram as demandas reprimidas e outras tantas se apresentaram. Mas, o serviço público vê-se às voltas com a falta de quadros técnicos de planejamento e de gerenciamento de projetos e obras; e com a abundância de quadros político-partidários, em geral despreparados para as funções.
É verdade que presidentes, governadores e prefeitos são premidos pelo prazo de mandato; é compreensível que tenham pressa. Mas o caminho que parecem querer não é correto; levará ao aumento dos problemas, das obras inacabadas com custo exagerado e desnecessárias. Não é a velocidade com que se licita a obra a chave da questão.
O mundo todo sabe, sobretudo os empreiteiros, que é a indefinição ou falta de projeto o principal fator de atrasos e de aumento de custos de obras. A indefinição projetual, aliás, é uma aliada poderosa da corrupção e dos malfeitos.  
Para superar a indefinição e a falta de projetos completos, o governo imaginou um atalho: transfere ao empreiteiro a tarefa de “projetar, construir, fazer os testes e demais operações necessárias e suficientes para a entrega da obra”.
Alguém faria isso com seus próprios recursos? Mesmo um construtor, no interesse de fazer sua casa, e sem tempo, contrataria um colega nessas condições?
O interesse público está na adequação da obra às necessidades da coletividade, na boa qualidade dos serviços e no seu preço justo. Isto exige um trabalho continuado que começa em definir o que se quer (o “Programa de Necessidades”), passa pela elaboração de projetos completos, seus licenciamentos, orçamentos confiáveis e transparentes, por uma licitação de obra que permita a concorrência, o gerenciamento dos projetos e o acompanhamento gerencial da obra .
Se os governos querem pressa precisam melhorar seus processos de decisão, o que se faz com órgãos técnicos de planejamento estruturados como função de Estado. É o que o mundo desenvolvido aprendeu.
As entidades nacionais de arquitetura e urbanismo, em documento intitulado “As obras públicas e o Direito à Cidade”, entregue ao governo federal e às lideranças do Congresso, são contrárias à extensão do RDC a toda obra pública e pleiteiam que a revisão da Lei de Licitações, em andamento no Senado, seja concluída com a exigência de Projetos Completos.
O Brasil é um país maduro, importante – não pode continuar aos solavancos. Os problemas urbanos precisam ser enfrentados para promover a democratização de nossas cidades. Esses atalhos levam a cidades com maior desigualdade social, insustentáveis e precárias – e à desmoralização da Política.

O futuro não dará razão a tais atalhos.

O Estado precisa circular

 *Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 26/04/2014
Sérgio Magalhães
Mais uma vez um conflito armado entre traficantes e policiais ocorre em área atendida por Unidade de Polícia Pacificadora, no Rio, e deixa vítimas fatais.
Conflito armado entre traficante e polícia, com vítima, ocorre há muito tempo em grandes cidades brasileiras e, pela recorrência, já é pouco divulgado. Mas a invisibilidade do fato, por sua banalização, não supera as suas consequências seja para a família da vítima ou para a cidadania.
No caso ocorrido em Copacabana, esta semana, foi diferente; houve protesto público nas ruas do bairro que se amplificou em noticioso local e internacional por dois principais motivos: pela proximidade da data da Copa do Mundo e por se tratar de área com UPP. Certamente, são duas situações especiais. Uma, é passageira; outra, espero, há de se constituir em um processo que ajude à redução da desigualdade social das cidades brasileiras.
Convivemos no país com um irônico paradoxo: um dos assuntos mais presentes na mídia é o das favelas; não obstante, o tema parece não figurar no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela típica não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Em São Paulo e no Rio de Janeiro supera 20% das moradias. Ainda, a favela é muitas vezes tratada como o genérico de todo assentamento popular – inclusive loteamentos.
Essas duas tipologias urbanísticas somam cerca de metade das moradias urbanas brasileiras. São muito diversificadas, mas, em geral, são lugares com pouca ou nenhuma infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, inclusive os de segurança e de regulação. A esse déficit de urbanização e de serviços públicos muitos chamam por “ausência de Estado”.
Assim, criam-se condições para que essas áreas sejam tomadas por interesses marginais, muitas vezes com dominação territorial armada, que impõem jugo discricionário às populações moradoras.
O desafio é justamente superar essa ausência de Estado com a urbanização e a universalização dos serviços públicos, também o de segurança, e fazer vigir aí a Constituição - o que pressupõe políticas públicas consistentes, continuadas, acordadas compartilhadamente como uma verdadeira agenda nacional para a redução da desigualdade social urbana.
A urbanização de favelas é uma experiência exitosa, demonstrada no Rio pelo programa Favela-Bairro, e em outras cidades. Mas não é algo que possa ser realizado sem consideração para com as preexistências ambientais, espaciais e culturais, sem bons projetos urbanísticos e sem cuidados construtivos. Nas áreas atendidas, “o Estado pode circular”, como pede o secretário de segurança do Rio.
Recuperando o território e protegendo a população do arbítrio, as UPPs cumprem papel importante em defesa da cidadania. Certamente é um longo processo e de larga abrangência.
Enquanto isso, precisamos proteger esse instrumento aplaudindo seus acertos, corrigindo suas falhas, sobretudo não tergiversando com eventuais descaminhos de seus agentes. Há uma essencial esperança no seu êxito.
Cada vítima de violência, em área de UPP ou fora dela, atingida por bandidos ou por policiais, não há de morrer em vão. Seu sacrifício não pode ser banalizado e ficar invisível; deve ser acolhido em reforço de nosso compromisso político no caminho da democratização de nossas cidades.

É nesse caminho que o Estado precisa circular.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

A boa cidade se projeta

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 313 - abril/2014
Em recente artigo no jornal O Globo, a jornalista Miriam Leitão aborda o sacrifício no transporte público vivido no dia a dia por milhões de cariocas e pergunta: por que a prometida melhora nos ônibus precisa esperar o fim de 2016, depois dos Jogos Olímpicos? 
Muitos de nós também temos nos perguntado sobre questões desse tipo, cuja lógica não alcançamos. Por que mais da metade dos domicílios urbanos não têm esgoto adequado? Por que tantas partes do território urbano brasileiro estão sob domínio armado da bandidagem? Por que todos os automóveis podem ser financiados, até com juro zero, e somente 20% dos domicílios contam com financiamento? E no Rio de Janeiro: por que os trens não são transformados em metrô? Por que se constrói metrô com uma só linha de dezenas de quilômetros, se todo o mundo sabe que metrô é rede?
A questão não é nova. As cidades brasileiras são barcos à deriva há muito tempo. O Brasil dedicou-se a tarefas emergenciais e descurou de seu sistema de cidades. Mas, no ponto em que estamos, o desenvolvimento econômico, social e político não é sustentável sem uma reversão no quadro de dificuldades de nossas cidades. A inovação, o conhecimento, a redução da desigualdade, a democracia política, o respeito ao ambiente, entre tantas outras exigências essenciais deste século, são todas interdependentes da qualidade do mundo urbano.
Quando voltamos nosso olhar para intervenções urbanísticas estruturais (e como são raras!), o fazemos vendo a cidade setorialmente. Mas nós não vivemos no mundo urbano contemporâneo em isolamento sem que haja prejuízo para o conjunto. Contudo, tratamos o transporte, o esgoto, a segurança, a moradia, o lixo – cada um autonomamente – como se a cidade se constituísse de um somatório de parcelas.
É compreensível, pois a cidade grande é de difícil apreensão. Mas é errado, já que mesmo uma metrópole é um corpo social e espacialmente íntegro, em geral contínuo, ainda que muito complexo e inalcançável pelo olhar do indivíduo.
Mas, sendo as cidades, sobretudo as metrópoles, o núcleo propulsor da economia do século 21, como as análises econômicas no Brasil e a previsão sobre seu desempenho continuam tão alheias à qualidade do sistema urbano? Todos sabemos que a universalização dos serviços públicos, exigência da cidade contemporânea, é fator importante para a redução das desigualdades sociais.
Isto é, a boa cidade reduz a desigualdade.
Nós, brasileiros, precisamos valorizar uma ação política de enfrentamento do quadro de dificuldades urbanas em busca da construção da cidade democrática. Não é razoável esperar que venham dos políticos iniciativas nesse sentido, sem serem fortemente pressionados pela opinião pública. É bom sinal que o trânsito caótico gere perguntas, como faz a jornalista, pois dessa inquietação pode se ampliar a compreensão sobre o sistema urbano.
Nossas grandes cidades, e cada uma em especial, precisam constituir núcleos públicos específicos para a promoção de debates, de estudos, planos e projetos que contemplem a sua realidade para além dos governos. Núcleo público – isto é, que incorpore as forças sociais, a universidade, as empresas, as instituições corporativas, a população, enfim, de modo permanente, financiado também no âmbito das três instâncias públicas, com recursos constitucionais bem definidos.
Não é tarefa singela. Estamos acostumados a não prever, a deixar para depois para ver como fica – o que é feito para valorizar as ações discricionárias e o avanço da corrupção. Mas a dimensão gigantesca de nosso Brasil urbano e as suas oportunidades desperdiçadas já não mais permitem o desprezo costumeiro sem o comprometimento profundo do desenvolvimento nacional.
Teremos eleições proximamente. É mais um momento de as cidades buscarem uma agenda para a sua democratização.