domingo, 12 de janeiro de 2014

João Teimoso


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 04/01/2014
Sérgio Magalhães
Ao se aproximar o aniversário de 450 anos da cidade, anuncia-se movimento para preparar o Rio para o seu quinto centenário. É justo.
As cidades não são fruto do acaso. As cidades são fruto de suas estruturas (sociais, culturais, econômicas, espaciais) e do que se deseja para o seu futuro. Mas o futuro não está mais lá à frente, a blindar nossas opções idealizadoras e equivocadas. Ele está aqui, construído dia a dia. Hoje, temos que tratar a cidade do presente, que se desloca permanentemente incompleta por sobre a linha do tempo.
Estudo coordenado pelo professor Mauro Osório, da UFRJ, recentemente divulgado em O Globo (“Centro é o motor da cidade”), informa sobre a distribuição dos empregos formais no município do Rio. Verifica-se que 37% localizam-se no Centro, 22% na zona Norte suburbana, 18% na zona Sul + Tijuca. Na Barra + Recreio, 7%.
Esse quadro evidencia um dos mais graves erros estratégicos cometidos pela cidade no último meio século: o projeto de esvaziamento do Centro. Mas, o velho Centro resiste.
Como sabemos, a partir da mudança da capital, o Rio reorientou seus vetores urbanísticos, estimulando a expansão a oeste. O plano “Rio Ano 2000”, de autoria do consultor grego Constantin Doxiadis, de 1963, previa criar-se dezenas de novas centralidades e deslocar o setor industrial, da zona Norte, para novo polo em Santa Cruz. Pouco depois, o Plano Lucio Costa, para a Barra, projetava a transferência do centro metropolitano para aquela região “... o que lhe confere então condições para ser, com o correr do tempo, o verdadeiro coração da Guanabara.” 
O Centro do Rio foi atingido também pelo abandono da baía de Guanabara, cuja poluição desafia governos. E ainda pela incrível lógica de nele se proibir novas habitações, como vigorou por trinta anos.
Nos anos 1980, foi desconstruída a frágil estrutura encarregada de planejar a metrópole. O município do Rio, seguindo o Estado, foi desmobilizando seus órgãos de planejamento.
Transposto o século, a cidade metropolitana continua sem políticas e sem projetos. Os grandes eventos colheram o Rio com planos concebidos há cinquenta anos – que vieram para os canteiros de obras seguindo a lógica de então. Isto é, reforçando a ideia de desconstrução da centralidade histórica, social, econômica, política e administrativa localizada no velho Centro.
Assim, o sistema de trens, que estruturou a metrópole a partir do Centro, transporta hoje 1/3 dos passageiros dos anos 1970 – embora a população tenha dobrado. Igualmente, o sistema de metrô caminhou como tartaruga e não se fez em rede, mas em linha, agora também em direção oeste. Construiu-se, erro sobre erro, a metrópole que se imobiliza em automóveis e ônibus, onde 25% dos moradores gasta mais de 3 horas no trajeto casa-trabalho-casa, a maior parte em direção a um Centro que não se quer que esteja onde está – e para o qual não se modernizam acessos. (Veja-se no estudo: 60% dos empregos estão no núcleo Centro + Subúrbios, o histórico eixo dos trens.)
O Centro está lá, há 450 anos – qual um João Teimoso. Ele constrói a identidade coletiva carioca e fluminense, como já construiu a identidade coletiva brasileira. Agora, está em nossa responsabilidade dizer como queremos o Rio no seu Quinto Centenário.

Mas, por hoje, Feliz Ano Novo!

Mudam-se os tempos.

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 07/12/2013
Sérgio Magalhães

As ações sobre a cidade não são isoladas; mesmo quando assim consideradas, têm consequências sociais. Veja-se o caso da Perimetral.

Primeira via urbana elevada do Brasil, construída nos anos 1950, seu objetivo explícito era permitir trânsito livre no Centro do Rio. Mas, de fato, a Perimetral inaugurou urbanisticamente no país a era do transporte individual, o tempo do automóvel. E o fez de modo avassalador.

Para passar pela área, imprensou-se entre o Museu Histórico, do século XVIII, e a Estação de Hidroaviões, jóia arquitetônica moderna; fez demolir o Mercado Público; conspurcou a Praça XV, sede política da Colônia e do Primeiro Império, bem como a antiga Alfândega, obra de Grandjean de Montigny, integrante da Missão Artística Francesa de 1816. No coração da capital federal, desconsiderou testemunhos de quatro séculos de história e cultura.
Rompida essa barreira simbólica, tudo estava à disposição do novo modelo.

As redes de transporte coletivo sobre trilhos, que existiam em todas as grandes cidades brasileiras, foram desconstruídas; os espaços públicos se descaracterizam; criaram-se linhas expressas para automóveis, muitas elevadas, que pouco se importam com os bairros que cruzam, como ocorre no Rio Comprido; a Linha Vermelha, em São Cristóvão; a Amarela, na Zona Norte. Deu-se força à ideia narcísica de que a cidade é para servir a mim e aos meus. É, certamente, um modelo anti-público.

Agora, que uma parte da Perimetral está no chão, há um novo fato urbanístico. (A derrubada, porém, precisa se completar, liberando também a Praça XV.) Haverá novo ciclo a inaugurar?
O prefeito do Rio interveio em uma estrutura de interesse metropolitano. É uma ação política que pede desdobramentos políticos, para além da construção de túneis e novas vias na área portuária. (Seria mais do mesmo.) Embora esse fosse o foco preliminar da derrubada, o fato ocorre em um momento novo, que explicitou necessidades importantes. É a oportunidade para um entendimento à escala da metrópole que enfrente seus desafios de mobilidade, agora na dimensão do coletivo.
Se a Perimetral inaugurou a era do transporte individual, sua derrubada se dá em um contexto onde a qualidade de vida urbana se coloca como uma exigência ampla. O carro já deu o que podia, mesmo com tecnologias avançadas; sua hegemonia não atende à cidade contemporânea. O direito à cidade se consolida. Não se reivindicam passagens mais baratas; mas respeito ao cidadão, com serviço que ofereça conforto e confiabilidade nos deslocamentos impositivos do quotidiano.
Em havendo entendimento político que corresponda aos tempos de hoje, novos vetores de desenvolvimento urbano e econômico adquirirão potência. O Rio pede novas estratégias, efetivamente metropolitanas, a serem debatidas e desenhadas.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Quem diria que a Perimetral derrubada poderia ser útil? Mas, será que já estamos suficientemente conscientes da enorme importância que os aspectos simbólicos têm sobre o destino da cidade?