sexta-feira, 4 de abril de 2014

A boa cidade se projeta

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 313 - abril/2014
Em recente artigo no jornal O Globo, a jornalista Miriam Leitão aborda o sacrifício no transporte público vivido no dia a dia por milhões de cariocas e pergunta: por que a prometida melhora nos ônibus precisa esperar o fim de 2016, depois dos Jogos Olímpicos? 
Muitos de nós também temos nos perguntado sobre questões desse tipo, cuja lógica não alcançamos. Por que mais da metade dos domicílios urbanos não têm esgoto adequado? Por que tantas partes do território urbano brasileiro estão sob domínio armado da bandidagem? Por que todos os automóveis podem ser financiados, até com juro zero, e somente 20% dos domicílios contam com financiamento? E no Rio de Janeiro: por que os trens não são transformados em metrô? Por que se constrói metrô com uma só linha de dezenas de quilômetros, se todo o mundo sabe que metrô é rede?
A questão não é nova. As cidades brasileiras são barcos à deriva há muito tempo. O Brasil dedicou-se a tarefas emergenciais e descurou de seu sistema de cidades. Mas, no ponto em que estamos, o desenvolvimento econômico, social e político não é sustentável sem uma reversão no quadro de dificuldades de nossas cidades. A inovação, o conhecimento, a redução da desigualdade, a democracia política, o respeito ao ambiente, entre tantas outras exigências essenciais deste século, são todas interdependentes da qualidade do mundo urbano.
Quando voltamos nosso olhar para intervenções urbanísticas estruturais (e como são raras!), o fazemos vendo a cidade setorialmente. Mas nós não vivemos no mundo urbano contemporâneo em isolamento sem que haja prejuízo para o conjunto. Contudo, tratamos o transporte, o esgoto, a segurança, a moradia, o lixo – cada um autonomamente – como se a cidade se constituísse de um somatório de parcelas.
É compreensível, pois a cidade grande é de difícil apreensão. Mas é errado, já que mesmo uma metrópole é um corpo social e espacialmente íntegro, em geral contínuo, ainda que muito complexo e inalcançável pelo olhar do indivíduo.
Mas, sendo as cidades, sobretudo as metrópoles, o núcleo propulsor da economia do século 21, como as análises econômicas no Brasil e a previsão sobre seu desempenho continuam tão alheias à qualidade do sistema urbano? Todos sabemos que a universalização dos serviços públicos, exigência da cidade contemporânea, é fator importante para a redução das desigualdades sociais.
Isto é, a boa cidade reduz a desigualdade.
Nós, brasileiros, precisamos valorizar uma ação política de enfrentamento do quadro de dificuldades urbanas em busca da construção da cidade democrática. Não é razoável esperar que venham dos políticos iniciativas nesse sentido, sem serem fortemente pressionados pela opinião pública. É bom sinal que o trânsito caótico gere perguntas, como faz a jornalista, pois dessa inquietação pode se ampliar a compreensão sobre o sistema urbano.
Nossas grandes cidades, e cada uma em especial, precisam constituir núcleos públicos específicos para a promoção de debates, de estudos, planos e projetos que contemplem a sua realidade para além dos governos. Núcleo público – isto é, que incorpore as forças sociais, a universidade, as empresas, as instituições corporativas, a população, enfim, de modo permanente, financiado também no âmbito das três instâncias públicas, com recursos constitucionais bem definidos.
Não é tarefa singela. Estamos acostumados a não prever, a deixar para depois para ver como fica – o que é feito para valorizar as ações discricionárias e o avanço da corrupção. Mas a dimensão gigantesca de nosso Brasil urbano e as suas oportunidades desperdiçadas já não mais permitem o desprezo costumeiro sem o comprometimento profundo do desenvolvimento nacional.
Teremos eleições proximamente. É mais um momento de as cidades buscarem uma agenda para a sua democratização.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Quiabo à Burle Marx

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 29/03/2014
Sérgio Magalhães
Em recente crônica, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos recorda pratos do cardápio carioca e sugere que se inclua o camarão com chuchu, o frango com quiabo, entre outros, no mesmo patamar como os espelhos da Colombo e o balanço das mulheres a caminho da praia, riquezas a preservar para que o Rio não perca sua identidade.
De fato, a cidade é constituída desses valores em mescla com seus espaços e na interação de seus habitantes, que constroem a memória coletiva e a identidade cidadã. O professor italiano Bernardo Secchi é específico: na cidade, a referência coletiva se alicerça no monumentum de grande significado social e alta qualidade arquitetônica.
No Rio há uma peculiaridade: os elementos geográficos.  Pão de Açúcar, Corcovado, Dois Irmãos, Gávea, Penha, o Maciço da Tijuca e a Baía de Guanabara, pontuam a paisagem – e, em certo modo, se associam à função de monumentum citada por Secchi.
Então, poderíamos dizer que a geografia faz a referência coletiva independentemente dos elementos arquitetônicos e urbanísticos?
Ao contrário do que pareceria, é mais complexo: há necessidade de um equilíbrio qualitativo entre os elementos construídos pelo homem e os elementos naturais para que a sinergia se estabeleça.
Nesse sentido, a arquitetura média produzida pelo Rio no século passado ajudou nessa composição. Ela não é uma arquitetura que busque sobrepor-se à paisagem. Aqui não cabem os edifícios estrelados de Dubai ou de Kuala Lumpur ou a torre “The Shard” (com 306m de altura), de Londres. No Rio, a regra edilícia fundada nos estudos de Alfred Agache, em 1928, determinou um continuum construído de edificações justapostas e de mesma altura, como ocorre no Castelo e nas orlas da Glória, Flamengo, Copacabana e Ipanema (até 1970), que resultou em um ambiente edificado em harmonia com os elementos geográficos monumentais. As construções servem de pano de fundo para os ícones da natureza.
Mas, se nas edificações a cidade soube conter-se, foi nos espaços públicos que o Rio produziu a exuberância urbanística e imagética apropriada à exuberância geográfica.
A simbiose monumental no Rio se inaugura com a Avenida Beira-Mar, em 1904. Ela incorporou a praia à cidade e o fez como espaço público, formatando a primeira resposta de mesmo nível qualitativo entre o construído e o geográfico - pela escala, pelo excelente desenho e pela inédita garantia de uso pleno. 
A partir daí, o Rio superou-se em qualidade do espaço público à escala da cidade: a orla de Copacabana e sua calçada excepcional (a original), a de Botafogo, o Aterro do Flamengo, com o Parque e os dois ícones arquitetônicos – o MAM e sua passarela (de autoria de Afonso Reidy) e o Monumento aos Pracinhas (Konder e Marinho) – e a expansão de Copacabana, dos anos 1970, com os mosaicos de Burle Marx, tudo isto é de uma riqueza espacial, paisagística e urbanística de incomensurável valor.
Entretanto, por que outros lugares importantes não tiveram igual qualidade, como a beira-mar do Centro, a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas e a Esplanada de Santo Antonio? Por que elementos urbanísticos significativos sofreram intervenções medíocres, como ocorreu na Av. Presidente Vargas com as passarelas?

Em tempos de renovação, é a própria cidade que nos oferece os caminhos. Frango com quiabo, Burle Marx e Floresta da Tijuca. No Rio, quando se quer, a cultura se ombreia à natureza.