terça-feira, 6 de janeiro de 2015

"Cidade não é só rua e edifício, é o que acontece neles"

por Paula Laureano
17-12-2014

O arquiteto urbanista Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), sustenta a ideia de que a cidade é um ser vivo em constante transformação, e que não se pode ignorar suas interações com quem a habita. Para Magalhães (que foi secretário municipal de Urbanismo entre 1993 e 2000), problemas como a mobilidade urbana não devem ser resolvidos com a construção de mais ruas e viadutos: “A mobilidade, do Rio de Janeiro e das cidades em geral, não pode mais ser baseada hegemonicamente no rodoviarismo”, acredita o especialista. Nesta entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, ele defende que o respeito à democracia e ao planeta estão intrinsicamente ligados à arquitetura.
Portal PUC-Rio Digital: O senhor afirma que a cidade é um ser vivo. Em que sentido?
Sérgio Magalhães
: A cidade respira. A cidade ama. A cidade acolhe as pessoas. Ela reage aos afetos e às hostilidades. Ela nasce, cresce, e pode morrer. É um ser vivo, sobretudo porque está em permanente transformação. Tal como as pessoas e os animais, a cada dia há outra conformação, outros interesses, as questões mudam. No cotidiano, as pessoas podem não ter essa percepção, porque se vê apenas a materialidade urbana. Mas ela é feita não apenas de matéria, como também da interação entre as pessoas e dos usos dos lugares. É essa relação que gera vida. A cidade não é apenas edifícios e ruas; ela é o que acontece nos edifícios e nas ruas, mais as pessoas, os animais e a memória coletiva.
Portal: O Congresso Mundial da União Internacional de Arquitetos, que se realizará em 2020, é uma espécie de Copa da Arquitetura. Pensando na Copa de Futebol, há alguma experiência em que devemos nos inspirar?
Magalhães:
 Se a cidade é um ser vivo, ela também é um ser único. Então, cada experiência tem as suas riquezas, os seus problemas e os seus ensinamentos. O que há de novo na doutrina urbanística e arquitetônica é que hoje nós temos o desejo de construir uma cidade melhor a cada dia, todos os dias, reconhecendo os espaços e a cultura existente. Diferente do que faziam os modernistas no século passado, que pretendiam construir uma cidade nova e entendiam que a cidade herdada era ruim e não valia a pena mantê-la.
Entre as memórias dos congressos mundiais, o de Barcelona, em 1996, é muito citado. O que o qualifica como uma experiência importante é que ele não se limitou a produzir um evento num determinado ambiente; a própria cidade entrou em processo de participação com arquitetos do mundo todo. Houve uma interação de tal força que ficou na memória dos que participaram como um evento ímpar. Nós queremos que, da mesma forma, a cidade do Rio de Janeiro também seja não só sede, mas também participante do Congresso de 2020.
Portal: De que modo a arquitetura se relaciona com a democracia? E com as necessidades do planeta?
Magalhães:
 A democracia tende a produzir questões para a arquitetura, que conduzam a uma melhor resposta para os cidadãos. No caso do tempo de hoje, se busca a equidade – diferente da igualdade, ela reconhece as diferenças e trata de oferecer as condições para que os diferentes tenham igualmente possibilidades de se desenvolver. Então um processo democrático, que construa a equidade, oferece à arquitetura melhores possibilidades para que ela floresça. A arquitetura objetiva a construção do espaço para a felicidade dos homens.
Já as razões do planeta são as mesmas da cidade e da arquitetura – é construir um mundo melhor. Elas nos são apresentadas como algo que precisamos observar para que as nossas gerações atuais consigam levar para as futuras o grau de qualidade que recebemos dos nossos antecessores. E a arquitetura também é isso, é a oportunidade de resolver problemas que permitam uma melhor adequação aos desafios do clima de modo saudável, de modo econômico, de modo pleno, e não utilizando mecanismos que gastem as energias vitais da sociedade e do próprio planeta.
Portal: As favelas já superam 20% do total de moradias no Rio de Janeiro e em São Paulo. Será que um dia poderemos olhar para as favelas realmente como bairros?
Magalhães:
 Nós temos que olhar as favelas como cidade. Há muitas formas urbanas que constituem bairros, e a favela é uma delas. A favela era vista como algo transitório, provisório, que poderia ser eliminada. Nós achávamos que as favelas eram intocáveis, que não podiam ter uma atuação pública relevante, e que só o saber popular tinha condições de intervir na favela. Com o Programa Favela Bairro (concebido por Magalhães em 1994, na primeira gestão de Cesar Maia), houve uma modificação nesse pensamento. Passou a ser possível levar às favelas os serviços de hoje, como infraestrutura e equipamentos sociais, ao mesmo tempo em que os valores ambientais e culturais estejam preservados. Eu gostaria que hoje as favelas pudessem ter todos os elementos contemporâneos, mas que o termo “favela” se descaracterizasse do modo pejorativo e que pudessem ser vistas da mesma forma que se percebe um prédio, um edifício, um shopping center.
Portal: Quase 30% da população do Rio leva duas horas para ir de casa ao trabalho. Que soluções arquitetônicas poderiam ajudar na mobilidade do Rio de Janeiro?
Magalhães:
 Do Rio de Janeiro e das cidades em geral, a mobilidade não pode mais ser baseada hegemonicamente no rodoviarismo. Isto é, nos modos de transporte sob pneus, automóveis e ônibus. Uma cidade grande como o Rio de Janeiro precisa dispor de uma rede de transporte de alta capacidade, que transporte um grande número de pessoas, como metrô ou trem urbano, em que esteja preservado o grau de eficiência e confiabilidade em relação ao tempo da viagem, ao conforto e à segurança. Então, imaginar que construindo viadutos, elevados, abrindo ruas nós vamos diminuir os problemas de mobilidade é uma ilusão. Quanto mais pistas de automóveis tivermos, mais difícil se dará o transito. O que nós devemos considerar para a mobilidade contemporânea é que ela não deve excluir nenhum meio de transporte, porque para cada um deles há uma vocação. Nos grandes deslocamentos, geralmente impositivos, casa-trabalho, a cidade grande oferece melhor serviço se utilizar o metrô ou o trem. Em rede, não em linha, onde haja conexões. Nos demais deslocamentos, a população pode caminhar. Nesse caso, há uma demanda de espaço público seguro e confortável, com calçadas boas, como elemento complementar. Não vamos nos iludir. Não tem futuro o modelo que adotamos durante 50 anos, de construir estradas e ruas, e que descaracterizou a maior parte das nossas cidades. Não tem futuro, e as grandes cidades do mundo já demonstraram isso.
Portal: Qual a sua opinião sobre o Arco Metropolitano e o Porto Maravilha, duas grandes obras em andamento no Rio de Janeiro?
Magalhães:
 O Arco Metropolitano é um equipamento importante para a logística, para o transporte e a distribuição das mercadorias. Mas, se for aproveitado como indutor de ocupação urbana, ele fará um péssimo serviço para a cidade. Ele diminuirá a densidade populacional, portanto tornará os serviços públicos mais caros e, certamente, desqualificará a cidade. Eu defendo que o Arco Metropolitano tenha o desenho urbanístico da Linha Vermelha, que dê acesso apenas em alguns pontos. Ele não pode ser igual à Avenida Brasil ou a Via Dutra, em que se constrói nas suas margens como se fosse um trecho urbano.
Agora, o desenvolvimento da área portuária é muito importante para fortalecer a centralidade do Centro Histórico em relação a toda a Região Metropolitana. O Porto Maravilha precisa ter um desempenho que dê perspectiva aos que vão investir e morar lá. O problema é que ele está sendo desenvolvido em um ritmo lento, e eu temo que ele perca o timing das Olimpíadas e não possa demonstrar toda a vitalidade possível. Eu desejo que a área portuária seja um grande sucesso, que tenha muita gente, muitos negócios, muito trabalho e habitação. Mas ainda é uma incógnita.
Portal: O senhor já afirmou que “um Brasil Urbano se somará ao Brasil Urbano de hoje”. Como visualiza esse Brasil do futuro?Magalhães: Independentemente do crescimento, nós vamos construir mais uma cidade na já existente. O tamanho médio das famílias vai diminuir, e novas moradias que vão ser necessárias. Como a cidade não crescerá em população, se ela crescer em área não ocupada vai ter menos gente morando por quilômetro quadrado. Ao perder densidade, vai tornar mais caros os serviços públicos e a infraestrutura, e vai dar menos vitalidade aos espaços públicos. Logo, eu desejo que essa nova cidade que se somará à cidade existente seja construída em áreas já ocupadas. Se observar bem, você encontra muitos espaços disponíveis, com facilidade. Aqui mesmo ao lado (a entrevista foi concedida na sede do IAB, no Flamengo), há dois quarteirões vazios desde que os bondes deixaram de existir. A Zona Norte tem uma enorme quantidade de terrenos ociosos, de galpões abandonados. Lugares onde se podem construir moradias, comércio. Imagina esses ambientes deixando de ser ociosos, começando a ter vida; todo o entorno melhoraria.

Isso não significa construir edifícios altos: eles não necessariamente aumentam a densidade urbana, ao contrário, podem diminuir. Eu e os meus alunos da UFRJ fizemos um estudo sobre isso. Existe um trecho em Ipanema entre a Rua Visconde de Pirajá e a Lagoa, onde só se encontram edifícios de cinco andares. Esse trecho chega ser 10 vezes mais denso do que os bairros das torres da Barra da Tijuca, por exemplo, porque entre um edifício e outro há grandes espaços, os edifícios são altos, têm menos aproveitamento, e as ruas não têm vitalidade também. A densidade ali também é mais alta do que o condomínio de edifícios conhecido como Selva de Pedra, onde moram pessoas de classe média-alta, no Leblon (o condomínio reúne 2.251 apartamentos em 40 edifícios). Paris tem gabarito de seis andares, e é considerada riquíssima sob o ponto de vista de vitalidade urbana. Já Nova York, conhecida por seus arranha-céus, consegue equilibrar a densidade populacional com espaços de convivência no meio de seus altos edifícios. A praça do Rockfeller Center (72 andares), famosa especialmente no inverno, é um bom exemplo.  
Portal: Em meados do século XX, o Brasil deixou de ser predominantemente rural para se tornar predominantemente urbano. Quais os pontos positivos e negativos dessa nova etapa?
Magalhães:
 Todos os pontos são positivos. A tendência é a vida urbana, é um desejo majoritário, porque é por ela que as pessoas conseguem uma saúde melhor, um emprego, educação. As condições sociais melhoram. A vida urbana proporciona interação, e o que faz a cidade existir é o desejo das pessoas interagirem umas com as outras, com pessoas diferentes, não iguais. O que dá riqueza na cidade é a possibilidade de circular e encontrar pessoas que se mostrem enriquecedoras mutuamente. É claro que o rural tem valor também, mas a ideia de que a vida no campo é de virtude e de que a vida na cidade é de pecado já é uma ideia antiga, que já está superada.
Portal: Arquitetura e urbanismo são indissociáveis?
Magalhães:
 Sim. Eu chamo tudo de arquitetura. Faz-se essa separação devido às atribuições profissionais reguladas por lei. Mas a rigor é tudo arquitetura. Ela trabalha com todas essas escalas de ocupação e de desenvolvimento do território. Eu sou arquiteto urbanista. 
Portal: Ser arquiteto é como brincar de ser Deus?
Magalhães:
 Não, eu acho que não é brincar; é propriamente ser Deus (risos). Já houve um tempo em que os arquitetos, ao projetar determinado ambiente, pensavam em transformar a vida das pessoas, em direcioná-las por um determinado caminho, em determinar o modo como elas viveriam naquele ambiente. Então, nesse aspecto ele seria Deus. Isto foi a concepção modernista de arquitetura. Ela desconsiderava a cidade existente, porque o que ela herdou já estava construindo aquele homem cheio de problemas, de desigualdades, da pobreza e da intolerância. Então o arquiteto modernista construiria uma cidade de homens felizes. Se você comparar uma cidade grande de hoje com as cidades modernistas, tipo as superquadras de Brasília, verá uma grande diferença. Os condomínios fechados, shopping centers, os subúrbios norte americanos em que moram ali pessoas com um determinado padrão de vida, com dificuldade às vezes até forte de interação com o outro. A crença era que o ambiente produziria felicidade, conduziria a relações sociais harmônicas. Hoje, nós estamos convictos de que o futuro é a soma dos presentes. Não cabe mais a pretensão de que o que você conceber arquitetonicamente determinará o comportamento humano. O que cabe, sim – e isso é que dá ao arquiteto maior prazer –, é produzir espaços de qualidade e que ajudem as pessoas a serem felizes. 


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Nem tudo que reluz é ouro

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 11/10/2014

Sérgio Magalhães

As últimas semanas foram ricas em cenas inesquecíveis na propaganda de TV. Destaco o ‘comercial’ do político de ficha controversa que se auto-proclama um lutador pela ética; ou a autoridade que recomenda o voto em candidato cheio de ruindade e o apresenta como ‘o melhor do país’.
Lembro ainda o protagonizado por atriz de grande credibilidade que exalta a vida em um condomínio fechado denominado “Ilha” – que não é cercada por água, mas ‘isolada’ da cidade.
São cenas em que a ficção assume-se como realidade e embaralha nosso acervo de valores.

Nas mesmas semanas, as eleições se desenrolaram passando ao largo da questão urbana. Em um país onde quase toda a população mora em cidades, é a realidade parecendo ficção.



Onde ficaram as dificuldades de mobilidade? A precariedade de moradia e de saneamento? A degradação dos espaços urbanos? A escassez dos serviços públicos? A insustentabilidade do modelo de expansão das cidades?

Quando algum desses temas é citado na propaganda política, fala-se em recursos financeiros ou em quantitativos; nada se diz sobre conceitos e qualidade dos investimentos.
O caso da mobilidade é exemplar: no Brasil urbano, embora o transporte coletivo seja o mais demandado pela população, os governos gastam 14 vezes mais em despesas relacionadas ao transporte individual do que ao transporte coletivo.

Também na habitação, seja com o Minha Casa Minha Vida ou com os condomínios tipo ‘ilhas’. A jornalista norte-americana Jane Jacobs reconhecia que apenas recursos não são suficientes. “Veja o que construímos com bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinqüência, piores que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são monumentos à monotonia; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isto não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.”
Esse desabafo de Jacobs é de 1961, em livro sobre a experiência norte-americana. Alguma semelhança com os modelos do finado BNH, que retornam fora de hora neste Brasil do século XXI?

O BNH (1964-86) financiou 4,4 milhões de domicílios e o MCMV (2009-14) financiou 1,5 milhão. Os números impressionam. Mas representam apenas 30% e 20%, respectivamente, das moradias construídas em cada período. Somando BNH, MCMV, CEF e todo o mercado imobiliário, financiou-se menos de ¼ dos 50 milhões de novos domicilios urbanos desde 1964. Contextualizados, o brilho diminui e não explicam a adoção de modelos falidos que criam guetos e induzem à expansão insustentável das cidades.

Contemporâneo de Jacobs, o historiador italiano Leonardo Benévolo também avaliava não haver determinismo entre crescimento econômico e melhora da cidade – mas interdependência. Para ele, a melhora urbana é um dos modos para se alcançar o equilibrio geral.

Tais conceitos explicitados na segunda metade do século passado não cairam no vazio. A experiência recente dos países mais desenvolvidos demonstra que a qualificação dos seus sistemas urbanos foi um dos esteios da melhora geral que experimentaram nas últimas décadas.

As boas cidades são os verdadeiros motores deste novo século.

Esperemos que nestes segundos turnos das eleições elas venham para o palco dos debates. Talvez a realidade não reluza tanto quanto a ficção sugere. Mas reconhecer os problemas é caminho para o seu enfrentamento.

GERAÇÃO 21: COMO RESPONDER?

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 317 - outubro/2014
Sérgio Magalhães
O Brasil vive um momento histórico onde, pela primeira vez, precisará enfrentar a questão urbana. A resposta terá implicações essenciais para o desenvolvimento, a equidade, o meio-ambiente e a própria democracia.
O sistema político foi surpreendido em 2013 pela força das ruas e considerou possível absorvê-las no âmbito das eleições de 2014. Pode surpreender-se outra vez. Os contornos imprevistos avançam além do embate partidário-eleitoral e pedem novos encaminhamentos. O cerne da questão é o modo como a população urbana tem sido (mal) tratada.
Até hoje, o aumento das cidades era visto como inevitável – quase uma força da natureza. Como a população crescia muito, justificavam-se todas as imprevidências, os erros de escolha, a falta de planejamento. Mas a base mudou. Agora, a realidade é a estabilidade demográfica. As cidades terão outras referências e os movimentos de 2013 sinalizam para essa direção.
Vivemos, porém, fenômeno social importante com largas consequências para a cidade: a redução do tamanho médio da família. Hoje, no Brasil, há três pessoas em cada domicilio, em média; mas, em uma geração, serão cerca de duas pessoas, como em países desenvolvidos. Isso significa que, sem a população crescer, é preciso aumentar em 50% o número de moradias, além de substituir as obsoletas, e prover novos equipamentos para as diversas funções da cidade e novas infraestruturas. É possível estimar que, em 25 anos, um outro Brasil urbano se somará ao Brasil urbano de hoje. Como fazê-lo?
Esta é uma agenda que implica mudança de paradigma urbanístico.
Se continuarmos no modelo atual, as cidades se expandirão para acolher as novas edificações e o farão em densidade demográfica cada vez mais baixa. Significa danos ambientais crescentes, infraestruturas sub-aproveitadas, transportes mais caros e mais demorados, perda de eficácia na prestação dos serviços públicos.
As exigências ambientais recomendam que a cidade não continue predatória de território. O rodoviarismo está condenado: a mobilidade precisará considerar os múltiplos modos e privilegiar redes de alta capacidade, como o metrô. A democracia política exigirá a universalização dos serviços públicos. Mas os recursos financeiros à disposição dos governos são limitados. Tudo isso é incompatível com cidades que se espraiam em densidades decrescentes – como ocorre hoje.
O Brasil precisará fazer esforço especial para trocar o modelo urbanístico. Não é fácil. Mas o momento é agora, quando a população para de crescer. Cada dia no modelo antigo torna a cidade mais extensa e menos densa, e mais distante sua democratização.
A cidade brasileira desta geração precisará se somar à cidade existente ficando onde está, sem se expandir e sem perder densidade. Além de necessário, isso é possível. Aproveitar os vazios urbanos e os equipamentos degradados, recuperar bairros inteiros, urbanizar assentamentos populares e oferecer terra a edificar, usando de modo correto os instrumentos legais, são algumas medidas que podem ajudar nessa tarefa.
É também uma agenda que exige novo paradigma na gestão pública. A cidade pede políticas públicas permanentes, não mais à mercê das idiossincrasias pessoais de governantes e dos interesses dos detentores de terras a valorizar. É tempo do planejamento compartilhado e de projetos consequentes.
Faz parte deste século 21 a compreensão sobre as vantagens da equidade, o respeito às razões do planeta e as virtudes da democracia política. Equidade, sustentabilidade e democracia são componentes essenciais do ideário contemporâneo. E as cidades, como maior artefato da cultura, se configuram em sintonia com o tempo.

A cidade é o lugar da política. A resposta da ‘geração 21’ nos dirá o bom caminho.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A soma será melhor

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 13/09/2014

Sérgio Magalhães

O Brasil se encontra ante um desafio inédito. A resposta terá implicações essenciais para o desenvolvimento, a equidade, o meio-ambiente e para a própria democracia.
O sistema político foi surpreendido em 2013 pela força das ruas e pensou absorve-las no âmbito das eleições de 2014. Pode surpreender-se outra vez. Os contornos imprevistos avançam além do embate eleitoral e pedem novos encaminhamentos. O cerne da questão é o modo como a população urbana tem sido (mal) tratada.
O Brasil viveu longo período de crescimento demográfico e de urbanização da população. A expansão das cidades era vista como natural. E os problemas urbanos como típicos do crescimento, justificando as imprevidências e a falta de planejamento. Construímos importante sistema de cidades, mas metade sem saneamento, péssimo transporte, moradias precárias. Contudo, a sensação de futuro se preservava.
Agora, quando a população pára de crescer, a base muda. As cidades terão outras referências e os movimentos de 2013 sinalizam nesse sentido. Seria o tempo de qualificar as cidades.
Vivemos, porém, fenômeno social que dobrará as cidades atuais. Hoje, no país, vivem três pessoas em cada domicilio urbano; em uma geração, serão duas pessoas. Sem crescer a população, isso implica aumentar em 50% o número de moradias, a que se adicionará a substituição das obsoletas, novos equipamentos, novas infraestruturas e serviços exigidos pela dinâmica geral. É possível estimar que, em vinte e cinco anos, um outro Brasil urbano se somará ao Brasil urbano de hoje.
Mas o sistema de cidades está dado, pouco mudará. Se persistirmos no modelo urbanístico atual, rodoviarista e predador de territórios, as cidades continuarão se expandindo. Expandir sem aumento de população significa o esvaziamento da cidade nas áreas hoje consolidadas. Isto é, infraestruturas sub aproveitadas, transportes mais caros e mais demorados. Sobretudo, a inviabilidade dos serviços públicos pelos altos custos. Ou seja, o aumento da desigualdade.
Como fazer com que a cidade universalize os serviços públicos, qualifique os espaços comuns, garanta a mobilidade adequada? Como alcançar a boa cidade, condição para o desenvolvimento econômico e social?
O Brasil precisará construir uma agenda especial para trocar o modelo urbanístico. Não é fácil, é necessário. Cada dia no modelo antigo, mais extensa, menos densa e menos bem servida fica a cidade.
A nova cidade precisará se somar à cidade existente ficando onde está. Ao invés de dispersar, concentrar e preservar a população. O aproveitamento dos vazios urbanos e equipamentos degradados, bairros inteiros a recuperar, a urbanização dos assentamentos populares e redes de transporte de alta capacidade são algumas medidas nesse sentido.
É uma agenda que pede nova gestão pública, planejamento compartilhado e projetos consequentes. São eles que desenharão a cidade democrática.
Faz parte deste século 21 a compreensão sobre as vantagens da equidade, o respeito às razões do planeta e as virtudes da democracia – componentes essenciais do ideário contemporâneo. As cidades, maior artefato da cultura, se desenham sintonizadas no tempo.

O desafio é inédito porque o país pouco cuidou do seu espaço urbano. Está na hora. Neste mais um Brasil urbano, a soma há de ser melhor do que as parcelas.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Morar Bem - "A arquitetura de agora valoriza o ambiente social"


De mãos dadas

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 16/08/2014

Sérgio Magalhães

A brutal transformação que as grandes cidades experimentaram ao longo do século XX teve dois componentes tecnológicos essenciais: o elevador e o automóvel. Eles mudaram a imagem ambiental urbana e produziram dois estereótipos: a cidade alta e a cidade expandida.
Nova York consagrou-se como cidade dos arranha-céus, mas não do automóvel; Los Angeles, como uma cidade sem limites sustentada pelo carro. No Brasil, em geral, as cidades foram muito receptivas ao edifício alto e modificaram até mesmo suas linhas estruturais pelo privilégio ao rodoviarismo.
Agora, na África do Sul, por ocasião da Assembléia Geral da União Internacional de Arquitetos, em que o Rio foi escolhida como sede do Congresso Mundial de Arquitetos de 2020, concorrendo com Paris e com Melbourne (Austrália), ficaram claros distintos modelos de cidades.
Paris, a metrópole reconfigurada no século XIX, preservou suas características ambientais centrais e cresceu para fora do núcleo apoiada no transporte de alta capacidade. Valoriza o continuum construído e o espaço público.
Melbourne, cidade de grande expansão a partir dos anos 1950, moldou-se pelo automóvel e pela edificação autônoma em relação ao espaço público. Valoriza o edifício isolado e o ‘não lugar’.
Rio, a cidade múltipla, diversa, não se contém nos modelos, e mantém certa ambiguidade nas escolhas que faz. Rejeitou o espigão mas estimula o aumento de volumes a construir. Sua vida é no espaço público – mas será que o valoriza?
Contudo, não são apenas os componentes tecnológicos que conformam as cidades.
A sociedade se molda na cidade e é nela representada. A aparente dissociação entre valores sócio-políticos e a materialidade urbana certamente é ilusória. Isto é, na cidade, a forma e o desejo andam de mãos dadas.
Se o que vemos no nosso quotidiano urbano indigna nossa concepção de civilidade democrática, tal dissintonia há de sinalizar ou um alheamento nosso em relação aos elementos conformadores da cidade ou uma hipervalorização de nossas expectativas destituída de consequências na ação política.
Daí, a importância do conhecimento e do debate sobre os caminhos escolhidos para o nosso desenvolvimento urbano-arquitetônico.
Com a escolha do Brasil e do Rio como sede do maior evento de arquitetura do mundo, o Congresso UIA 2020, sob o tema “Todos os mundos; um só mundo; arquitetura 21”, pelos próximos seis anos teremos a possibilidade de ampliar a reflexão sobre nossas cidades.
Elas ainda são fontes de desigualdade, a ser combatida. Lugares do conflito, são instrumentos da educação para o convívio entre os diferentes e para a tolerância, a ser valorizada. A dimensão espacial desses propósitos é a arquitetura.
A cidade do desejo contemporâneo é acolhedora e inclusiva e se desenha voltada para as pessoas – para todos os homens, mulheres, crianças e idosos, com capacidade de movimento ou com dificuldades para tanto, pedestres ou não, de todas as etnias, religiões e talentos. Os lugares são compartilhados e os serviços urbanos são universalizados. É uma cidade não predatória de território e do ambiente.

A forma urbana que corresponde a tal desejo não se esgota em um modelo.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Vitória da Copa

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 316 - julho/2014
Sérgio Magalhães

Escrevo às vésperas da Copa do Mundo, na expectativa de vitória brasileira e da realização de um grande evento em todo o país. Também escrevo às voltas com greves, ruas tomadas indistintamente por manifestações de portes variados, cidades à beira de um ataque de nervos. Como estaremos quando esta revista estiver nas bancas?
O processo de urbanização vivido pelo país desde meados do século passado resultou na quadruplicação da população urbana e na promoção de vinte metrópoles, com duas megacidades. As melhoras nos índices sociais, de saúde, mortalidade infantil, longevidade, alfabetização, educação, entre outros, tiveram na cidade o seu suporte essencial e, em processo biunívoco, deram força ao crescimento urbano.
O processo político também foi vertiginoso. Superada a ditadura, o país implantou uma democracia consistente, venceu a instabilidade financeira-inflacionária, promoveu a melhora econômica de milhões de brasileiros e reduziu a miséria. Estamos nos encaminhando para a sétima eleição geral desde a Constituição de 1988.
Contudo, há uma sensação geral de desconforto que faz com que inclusive as grandes conquistas estejam sob dúvida. Parece haver um consenso: a vida urbana tem se deteriorado muito nos últimos tempos.
Dificuldades na mobilidade, aumento da violência, ausência de serviços públicos ou ineficiência na sua prestação, entre outros, são temas do quotidiano da imensa maioria dos brasileiros, em especial nas grandes cidades. E este panorama não se coaduna com a ideia de que o Brasil é um novo fenômeno mundial, a sétima economia do mundo, um país rico.
Onde está situado o descompasso?
A Copa do Mundo, assim como os Jogos Olímpicos, certamente não são uma panaceia para a superação dos nossos problemas. Porém atuam como potencializadores de esforços e de recursos que estariam dispersos ou sequer seriam disponíveis. Mas, justamente por se configurarem como um momento preciso, uma data específica, é que conseguem a mobilização capaz de acelerar processos ou propor novos desafios.
Artigo assinado pelo presidente do Tribunal de Contas da União, publicado em O Globo em 12 de junho, afirma que apenas 43% das obras de mobilidade urbana projetadas como legado da Copa ficaram prontas. Diz o TCU que “o Brasil precisa planejar melhor” e que a instituição “está engajada em um projeto de Estado para pensar o país a longo prazo”.
Assim, quando não se alcançam as metas elencadas e as promessas não se materializam, põem-se à luz muitas das dificuldades estruturais ao desenvolvimento. E, entre estas, encontra-se o descompasso entre as exigências do sistema urbano brasileiro e a capacidade do Estado enfrentar os desafios urbanos contemporâneos.
O Estado brasileiro cresceu muito nas últimas décadas. Mas ainda não atentou para a necessidade de estruturar, nos três níveis de governo, um sistema de Planejamento que seja compatível com os avanços políticos alcançados com a democratização. Nós fomos capazes de construir um importante, complexo, diverso e rico sistema de cidades. Mas nesse processo também se promoveu um enorme passivo sócio-ambiental, crescente desigualdade intra-urbana e escassez na prestação dos serviços públicos urbanos.
As coisas ficaram mais complexas e a discricionariedade de bons e honestos governantes não é mais suficiente. Os problemas urbanos não se resolverão por mágica, por promessa ou apenas por “vontade política”. Nossas cidades precisam de políticas públicas consistentes, implantadas com continuidade, de amplo conhecimento, que garantam a todo cidadão o pleno exercício do Direito à Cidade.

Vencido o mês do futebol, espero que o Brasil tenha sido vitorioso. Se possível, também nas quatro linhas. Mas, de qualquer modo, sairá desta Copa do Mundo um país mais atento às dificuldades de suas cidades.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Está valendo o jogo?

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 21/06/2014
Sérgio Magalhães
Acabada a 2ª Guerra Mundial, Jean Paul Sartre visita Nova York pela primeira vez. À procura de uma imagem urbana reconhecível, que não encontra, ele se sente perdido entre ruas retas. Para ele, a cidade não tem a mesma “natureza” da sua Paris.
Mas a Paris que Sartre naturalizava era resultante das obras promovidas em meados do século XIX e que então causaram estranhamento ao poeta Charles Baudelaire: “A forma de uma cidade / muda mais rápido – ai de mim – / que o coração de um mortal”.
Agora, século XXI, a atriz Fernanda Torres sofre com perdas afetivo-arquitetônicas em seu bairro, como o anunciado fechamento do Cinema Leblon. “Devia haver um decreto para impedir que, ao crescerem, as cidades deixem de ser o que são”, sugere.
Sartre, Baudelaire e Fernanda sintetizam sensações de desconforto ante a perda de referências espaciais.
Embora saibamos que toda cidade é sempre outra, ainda que a forma seja estável, pois o uso, as pessoas e os sentimentos são cambiantes, mesmo assim a relação com o ambiente urbano constrói a identidade cidadã e a noção de pertencimento à cidade. Mudar a cidade, portanto, não é ação destituída de consequências importantes para as pessoas. E, por isso mesmo, precisa ser tratada também na dimensão que interessa ao cidadão e à memória coletiva.
Em nosso arcabouço jurídico, o Estado tem o monopólio de regular o volume e o uso das edificações. O que legitima tal privilégio é a busca pela forma urbana que melhor possa corresponder à ideia de uma boa cidade. A lei expressaria esse caminho. No entanto, o poder público tem abstraído essa responsabilidade, priorizando legislar sobre o aproveitamento imobiliário dos lotes através de índices genéricos que não consideram as proporções dos edifícios entre si e com a cidade. Se, de fato, buscasse o melhor ambiente, o Estado não deveria “vender” licenças para construir além do permitido pela lei, o que tem sido feito crescentemente. Com isso, a imagem ambiental da cidade, na prática, é desenhada pela propriedade fundiária.
Abre-se uma luta inglória entre o interesse do negócio imobiliário e as referências coletivas e cidadãs. Parece ser o caso do Cinema Leblon.
A lei protege o edifício e o seu uso como cinema. Mas a empresa proprietária do imóvel e do cinema afirma que o uso só será possível se for construído um edifício comercial no terreno. O lucro imobiliário constituirá um fundo para manter o cinema? Essa equação não está explicada.
O que se percebe é que a função cinema está sendo utilizada como elemento de troca para permitir que o tombamento do imóvel seja “flexibilizado”. Fica o cinema, mas não fica o edifício tombado. Ou seja, entre preservar a referência de uso e a referência espacial, opta-se pela primeira.
Essa é uma resposta que privilegia um aspecto da construção da memória coletiva em detrimento de outro elemento dela constituinte.

Em tempos de Copa, toda esperança pode mudar em segundos. Vimos agora como ocorreu com a seleção campeã do mundo de 2010. As regras assim o definiram. Mas, no caso da cidade, qual o jogo que vale?

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Nada de resposta única


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 315 - junho/2014
Sérgio Magalhães

Os movimentos populares por moradia apresentaram intensa mobilização nas últimas semanas em diversas cidades do país. A crise da habitação, porém, não se resolve com a construção de moradia. Na cidade contemporânea, habitar envolve uma multiplicidade de condições – a casa é apenas uma delas. Enfrentar o problema habitacional pressupõe tratar a questão urbana de modo abrangente: na infraestrutura, na mobilidade, nos serviços públicos, no espaço público, nos equipamentos urbanos e, obviamente, no abrigo.
Contudo, nossas políticas públicas, quando existem, são sempre setoriais. Os gestores públicos enfrentam cada problema com o que lhe parece mais objetivo. Isso, porém, tende a conduzir a equívocos reiterados, como se dá na moradia popular.
No Brasil, há décadas, os governos insistem, como política de habitação, na construção da moradia utilizando o modelo dos conjuntos residenciais. A experiência demonstra um duplo fracasso dessa política: (i) na tentativa governamental de ter exclusividade na promoção habitacional popular; e (ii) na adoção de apenas uma modalidade, o conjunto residencial. Com isso, a produção de unidades é muito inferior à demanda, enquanto se amplia o número de moradias erguidas pelas famílias nas condições mais precárias. E vende-se a ilusão de que estamos enfrentando o problema da moradia popular.
Não há resposta única para um problema tão amplo. É a soma de respostas, pequenas e grandes, que poderá enfrentar a questão.
Entre elas está a qualificação do imenso patrimônio econômico, social e cultural já gerado pelo povo brasileiro na produção de suas moradias, muitas vezes mais bem inseridas no contexto urbano do que as dos programas oficiais. A urbanização desses assentamentos populares, em geral carentes de infraestrutura e equipamentos que somente o esforço coletivo pode prover, é uma resposta essencial.
Bairros bem localizados, mas hoje degradados, podem recuperar sua vitalidade com estímulos à produção nova e com melhor tratamento dos espaços públicos e dos serviços. É o caso de muitos bairros centrais de nossas cidades. No Rio, São Cristóvão, Benfica e muitos outros são excelentes lugares habitacionais à espera de política de recuperação. Imóveis mais antigos também oferecem uma infinidade de oportunidades de aproveitamento para a população de renda baixa e média, em especial para o aluguel social, desde que se trabalhe de maneira integrada com financiamento dirigido para a restauração desse patrimônio.
A valorização imobiliária, em geral, tem sido onerosa para as famílias que pagam aluguel, o que pode levar à sua expulsão para áreas periféricas. É um tema complexo. Políticas de moradia para aluguel vinculadas ao crédito para novas habitações, onde parcelas sejam necessariamente destinadas a famílias de renda mais baixa, têm sido testadas em diversos países com resultados satisfatórios.
Os financiamentos habitacionais estão dirigidos prioritariamente para governos e empreiteiros e é por meio deles que a família tem acesso ao bem. Com isso, prevalece o interesse comercial do construtor na escolha do lugar, da tipologia e da qualidade construtiva. A família precisa ter crédito independente – não pode ser um repasse do promotor – e deve poder escolher onde morar e em que condições.
Enfim, o programa federal Minha Casa Minha Vida, se deixar de ser visto como a única resposta para a crise de moradia popular, poderá prestar melhores serviços ao desenvolvimento social e urbano. Certamente estará mais bem inserido na cidade e com melhor qualidade projetual e construtiva.

O problema habitacional é do tamanho do Brasil urbano. Ele deve ter muitíssimas respostas.

São outros quinhentos


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 25/05/2014
Sérgio Magalhães

Passando por um mergulhão recém inaugurado, comentou comigo o taxista em Brasília: “não entendo o pessoal que reclama de gastos com obras da Copa; fosse na Alemanha, que tem tudo, tá bem; mas aqui, que não tem nada?”
De fato, se considerarmos o todo de cada cidade, essa avaliação tem o seu valor.
Brasília, por exemplo. O Plano Piloto, a região do Distrito Federal sob desenho de Lucio Costa, tem qualidade ímpar, com suas superquadras, paisagismo magnífico, edifícios públicos de reconhecimento mundial, enfim, é uma “civitas” e uma “urbes”, como queria o seu autor. Mas no PP moram menos de trezentos mil habitantes enquanto que na Grande Brasília já são mais de três milhões. Nas áreas satélites ao Plano, a realidade é outra: há falta de infraestrutura, de transporte, de arborização e de serviços públicos.
É uma realidade comum às cidades brasileiras, nas quais a maior porção é composta por uma ocupação difusa com urbanização precária e grande escassez de serviços públicos. Tem razão o taxista: falta muita coisa na cidade. A obra pública é indispensável.
Os governos focam na obra o seu objeto de desejo. Querem obra (não necessariamente obra pronta...). E, paradoxalmente, não se preocupam em planeja-las.
No país, os incipientes sistemas públicos de planejamento foram desmobilizados, seus quadros funcionais são mínimos. Os governos passaram a se apoiar em equipes comissionadas, que não lhes dão o suporte da pesquisa e da reflexão.
Querendo abstrair a carência de planejamento e de projetos, sem os elaborar, o governo federal editou um regime especial de licitação de obras públicas, o RDC, com o qual as empreiteiras são contratadas mesmo sem projeto, o que vale para as obras da Copa e do PAC. Reduz-se o prazo para contratação do construtor, não necessariamente o das obras; sem projeto, as obras têm preço e qualidade à conveniência do interesse comercial da empreiteira. Não é um bom legado, como nos diz o sentimento das ruas. Felizmente, a generalização desse regime para todas as obras públicas, em todos os níveis de governo, que chegou a ser proposta no Congresso, foi rejeitada pelo Senado esta semana.
O planejamento da ordenação do território e das obras públicas correspondentes é função de Estado e pede continuidade. Agindo sem planejamento, na emoção da premência, os governos aumentam as chances de erro - no custo, na qualidade e nos prazos. Erram também na avaliação das prioridades, o que é apontado por muitos brasileiros que se manifestam em relação às obras da Copa.
Lá na Alemanha, que tem tudo, por certo cada obra pública é planejada, discutida com os cidadãos, avaliadas possibilidades e custos. O governo contrata projetos completos e depois é que contrata a construção.
Aqui, onde falta tanto, mais necessário seria um Estado preparado para definir investimentos de alto rendimento social. A desigualdade intra-urbana, que se resume na expressão do taxista, “aqui, que não tem nada”, é um dos mais prementes desafios da cidade contemporânea. A construção da consciência coletiva por cidades menos desiguais, esse sim, talvez possa ser um dos melhores legados da Copa.
Uma das lições do futebol é que o improviso às vezes dá certo no campo. Nas obras, fica mais caro. Na Copa, são outros quinhentos. Mas, por enquanto, vamos torcer!

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Condição Necessária

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 314 - maio/2014

Irônico paradoxo. Um dos assuntos mais presentes na mídia brasileira é o das favelas. Não obstante, é tema que não figura no rol de preocupações do Estado brasileiro.
A favela não é um fenômeno restrito a poucas cidades. Estão em favelas perto de 10% dos domicílios urbanos brasileiros; em São Paulo e no Rio de Janeiro alcançam mais de 20% dos domicílios dessas cidades.
Embora se constitua como uma tipologia típica, onde predominam as moradias produzidas por auto-construção e na qual o espaço público é, em geral, mal definido, hoje muitas vezes a favela é tratada como o genérico de todo assentamento irregular, inclusive os loteamentos populares. De certo modo esse entendimento corresponde à realidade, pois favelas e loteamentos populares indistintamente em geral são lugares com déficit de infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos, com moradias construídas segundo as possibilidades das famílias – do jeito precário que a falta de condições financeiras permite.
Assim, essas duas tipologias associadas constituem a maior parte das cidades brasileiras. Abrigam mais da metade das moradias e não contam com as condições urbanísticas essenciais à vida contemporânea.
Pode-se afirmar que, no quadro das cidades brasileiras, há um enorme déficit de urbanização e uma grande escassez de serviços públicos, o que muitos chamam por ausência de Estado. 
Mas, ao invés de reconhecer o esforço que as famílias pobres já fizeram em busca de sua inserção na sociedade urbana, tratar de suprir as infraestruturas e garantir os serviços públicos nesses assentamentos populares, o Estado volta seu interesse quase que exclusivamente para a construção de conjuntos residenciais. Simultaneamente, ignora a realidade da maioria e sinaliza com um modelo habitacional que não pode universalizar. Ainda, ao abandonar à própria sorte partes importantes das cidades, o Estado permite que elas sejam tomadas por forças da anomia e por interesses marginais, que impõem regras próprias às populações submetidas – para além da dominação territorial armada. A Constituição brasileira não vige nesses territórios.
Seja no tempo dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (anos 1940-1950), ou do BNH (anos 1960-1980) ou, ainda, do programa Minha Casa, Minha Vida (desde 2009), o modelo habitacional a que o Estado tem se dedicado é ineficiente mesmo tratando-se apenas da produção de moradia. Historicamente, esse modelo produziu menos do que um quinto dos domicílios urbanos. Até mesmo nos momentos de grande prioridade é largamente insuficiente.
Veja-se o caso do Programa MCMV. Anuncia ter construído 1,5 milhão de domicílios desde 2009. Nesse mesmo período, o povo brasileiro construiu mais de 7,5 milhões de residências. Ainda que se considere alcançar a meta de 3 milhões de domicílios até 2015, ainda assim a contribuição do MCMV – importante, não há dúvida – não chegará a 40% da produção de domicílios urbanos brasileiros no período. Ou seja, mais de 60% dos domicílios continuarão sendo produzidos na precariedade e na irregularidade das favelas e dos loteamentos populares.
Estimular a produção de moradia em bases regulares, legais, permanentes, é uma política necessária, indispensável, mas que precisa incorporar outros modelos que não apenas a construção de conjuntos residenciais. A expansão do crédito imobiliário diretamente às famílias é uma alternativa desejável.

Mas, de qualquer modo, não é possível que o país persista na ausência de políticas públicas de urbanização de favelas e loteamentos populares com a correspondente universalização dos serviços públicos. A incorporação desses assentamentos à cidade contemporânea – onde se garanta às suas populações a proteção da Constituição – é uma condição para o desenvolvimento brasileiro. Sobretudo, é um direito cidadão e uma exigência democrática.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Licitação de obras públicas deve ser simplificada? Não. - Atalho para malfeitos -

Sérgio Magalhães

Nós estamos satisfeitos com as obras dos estádios para a Copa? Estão no prazo? Estão com custos conhecidos? Estamos contentes com as obras de infraestrutura prometidas? Estão bem feitas? E as obras do PAC?
Pois saibamos que foram contratadas por uma lei de exceção – o tal RDC. Agora, quer-se estender a todas as obras públicas, sejam municipais, estaduais ou federais, o mesmo regime. O argumento: precisa simplificar a licitação.
O limite da simplificação é o gestor público chamar o empreiteiro seu amigo e lhe dizer: “Faça essa obra. Eu não sei bem o que eu quero, mas você pode começar. Meu povo garante os dinheiros.”
Será fantasia?
Nas décadas de inflação era difícil superar a lógica da premência: qualquer coisa agora é melhor do que nada amanhã.  Os incipientes sistemas públicos de planejamento e de gerenciamento de obras foram esvaziados.
Com a estabilidade e o crescimento econômico afloraram as demandas reprimidas e outras tantas se apresentaram. Mas, o serviço público vê-se às voltas com a falta de quadros técnicos de planejamento e de gerenciamento de projetos e obras; e com a abundância de quadros político-partidários, em geral despreparados para as funções.
É verdade que presidentes, governadores e prefeitos são premidos pelo prazo de mandato; é compreensível que tenham pressa. Mas o caminho que parecem querer não é correto; levará ao aumento dos problemas, das obras inacabadas com custo exagerado e desnecessárias. Não é a velocidade com que se licita a obra a chave da questão.
O mundo todo sabe, sobretudo os empreiteiros, que é a indefinição ou falta de projeto o principal fator de atrasos e de aumento de custos de obras. A indefinição projetual, aliás, é uma aliada poderosa da corrupção e dos malfeitos.  
Para superar a indefinição e a falta de projetos completos, o governo imaginou um atalho: transfere ao empreiteiro a tarefa de “projetar, construir, fazer os testes e demais operações necessárias e suficientes para a entrega da obra”.
Alguém faria isso com seus próprios recursos? Mesmo um construtor, no interesse de fazer sua casa, e sem tempo, contrataria um colega nessas condições?
O interesse público está na adequação da obra às necessidades da coletividade, na boa qualidade dos serviços e no seu preço justo. Isto exige um trabalho continuado que começa em definir o que se quer (o “Programa de Necessidades”), passa pela elaboração de projetos completos, seus licenciamentos, orçamentos confiáveis e transparentes, por uma licitação de obra que permita a concorrência, o gerenciamento dos projetos e o acompanhamento gerencial da obra .
Se os governos querem pressa precisam melhorar seus processos de decisão, o que se faz com órgãos técnicos de planejamento estruturados como função de Estado. É o que o mundo desenvolvido aprendeu.
As entidades nacionais de arquitetura e urbanismo, em documento intitulado “As obras públicas e o Direito à Cidade”, entregue ao governo federal e às lideranças do Congresso, são contrárias à extensão do RDC a toda obra pública e pleiteiam que a revisão da Lei de Licitações, em andamento no Senado, seja concluída com a exigência de Projetos Completos.
O Brasil é um país maduro, importante – não pode continuar aos solavancos. Os problemas urbanos precisam ser enfrentados para promover a democratização de nossas cidades. Esses atalhos levam a cidades com maior desigualdade social, insustentáveis e precárias – e à desmoralização da Política.

O futuro não dará razão a tais atalhos.