quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A cara do Rio

Luiz Fernando Janot
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 01/10/2011
A história das civilizações mostra que a maioria das intervenções nas cidades visava a atender aos interesses políticos e ideológicos dos seus governantes. Se no passado as condições para a implantação de grandes projetos urbanísticos eram factíveis, o mesmo não se pode dizer dos tempos atuais, em que as cidades adquiriram grandes dimensões e um alto grau de complexidade. Numa cidade como o Rio de Janeiro, os projetos urbanos incorporam parâmetros de diversas naturezas. Dentre eles, tem se sobressaído a parceria público-privada como forma de viabilizar projetos através de operações financeiras. Na verdade, esse procedimento reduz as questões urbanas apenas aos seus aspectos de materialidade, desprezando a subjetividade que transformou a cidade em símbolo da existência humana. Trata-se de uma conduta pragmática baseada na falsa crença de que os valores econômicos, por si sós, podem responder a todas as questões e anseios da sociedade. Esses mecanismos financeiros têm como agravante o fato de que o poder público se vê obrigado a avalizar os financiamentos concedidos, subsidiar os investimentos realizados e cobrir os eventuais prejuízos com recursos da própria sociedade.
Outro fator relevante na configuração dos espaços urbanos diz respeito à maneira como os indivíduos interagem com a cidade e se apropriam dos espaços públicos. Nas últimas décadas, o Rio assistiu à urbanidade se esfacelar diante da violência urbana que se espalhou pelos espaços públicos. Em decorrência desse fato e de outros semelhantes, uma grande parte da população passou a utilizar o shopping center como espaço alternativo para o lazer e o convívio social. Em contrapartida, a expansão desses empreendimentos pela cidade está contribuindo para o esvaziamento dos espaços públicos, especialmente nos subúrbios cariocas. A compreensão desses e de outros fatores que interferem na estruturação dos ambientes urbanos exige o conhecimento e a interpretação dos valores culturais e das maneiras de ser e viver dos grupos sociais que habitam a cidade. Nas cidades onde os contrastes sociais, econômicos e culturais são mais acentuados a tendência é ver nos espaços urbanos os reflexos dessas diferenças. No Rio, o caráter diversificado do ambiente natural, da paisagem urbana e dos valores culturais da sua gente, forma um quebra-cabeça urbano onde riqueza e pobreza, formalidade e informalidade, ordem e desordem, se relacionam de maneira nada comparável. Nesse teorema se incluem as diversas formas de solidariedade e de transgressão praticadas indiscriminadamente por todos os setores da sociedade. Portanto, estabelecer criteriosamente os limites da repressão e da permissividade, desprendendo-se de posições preconceituosas ou ideológicas, é o primeiro passo para melhor compreender a atual dialética urbana praticada na cidade.
Na medida em que os espaços públicos são relegados ao abandono e ocupados de forma predatória por grupos que vivem à margem da sociedade, a cidade tende a assistir à desconstrução do seu modelo de urbanidade. Ambiência urbana e urbanidade são componentes indissociáveis da vida na cidade e, como tal, precisam ser resgatadas antes que percam a sua razão de ser. Em relação ao Rio, não há como aceitar passivamente a ocupação predatória dos espaços públicos por camelôs espalhando tabuleiros e mercadorias pelas calçadas, pichadores agindo impunemente, bicicletas circulando na contramão, carros estacionados em locais proibidos, cães ferozes soltos nas praias e praças, mesas de bares ocupando integralmente os passeios públicos, calçadas e ruas esburacadas, fezes de cachorro e lixo espalhados pelo chão, festas com som ensurdecedor até altas horas, carros com alto-falante infernizando a vida de moradores de bairros tranquilos, gente urinando em árvores, postes e muros, mendigos e drogados dormindo ao relento, bandos de pivetes circulando pelas ruas livremente. Esses são alguns exemplos comprometedores das relações de urbanidade desejada.
Esperamos que, através das Unidades de Ordem Pública (UOPs) que estão sendo implantadas na cidade, as autoridades públicas demonstrem a firme intenção de enfrentar essas questões com determinação e sabedoria. Entretanto, todo esse esforço será inútil se tais ações não forem acompanhadas de medidas sociais paralelas e compreendidas pela população como uma atitude necessária para reverter o quadro desolador em que se encontram certos espaços públicos da cidade.

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