segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Boa intenção...

Sérgio Magalhães

Em entrevista à revista Carta Capital, a presidente Dilma Roussef defende a obra do trem-bala Rio-SP como um instrumento para o aproveitamento de novas ocupações no percurso.


Pense no percurso entre a serra e o mar. É um dos lugares mais bonitos do País. Não existirá motivo para que as pessoas não queiram morar nesse caminho. Com o trem-bala, alguém que viva a 60, 70 até 100km do Rio ou de São Paulo chegará rapidamente aos centros dessas cidades.


A presidente se queixa que esse tema não seja debatido sob o ponto de vista do desenvolvimento urbano.


Não se trata apenas de oferecer mais uma alternativa de transporte, mas de produzir uma reconfiguração urbana. É um ponto que ninguém discute. No trajeto entre o Rio e São Paulo vai ocorrer uma desconcentração urbana.


A mim me parece promissor que o tema urbano entre no interesse da presidente, e que ela convoq
ue ao debate. Contudo, é também bastante preocupante que seja dada tanta ênfase ao conforto de quem virá a ocupar o trajeto Rio-SP, enquanto nossas cidades metropolitanas movimentam-se em transporte público de baixíssima qualidade.


E quem já mora na cidade e se desloca compulsoriamente casa-trabalho-casa sem conforto, sem segurança e sem previsão de quanto tempo levará, como fica?


Concordo com o debate. Tenho esperança que, com ele, uma verba de 20% do trem-bala possa ser aplicada no transporte metropolitano sobre trilhos. Será a redenção do usuário.




Qualidade essencial

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 284.
Sérgio Magalhães
A partir de meados do século 20, o processo de urbanização brasileiro adquiriu consistência e se tornou hegemônico no contexto de ocupação demográfica do território nacional.
Em sua primeira motivação, ele expressa o desejo pela vida urbana, isto é, pela possibilidade de interação social que a cidade proporciona.“Por que desejas a cidade?”, perguntou arquiteto-antropólogo Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989) ao urbanizar uma favela, nos anos 1960. “Pelo movimento”, respondeu o emigrante nordestino, recém-chegado ao Rio de Janeiro. A resposta surpreendeu, pois se esperaria algo mais objetivo, como encontrar emprego, ou estudar, ou porque seus amigos também emigraram.
A troca de experiências, o encontro da diversidade, o ‘movimento’, essa é a base da vida urbana. As outras respostas são a racionalização daquela escolha. Contudo, as cidades têm experimentado uma mudança qualitativa que alcança o próprio cerne.
A urbanização acelerada, fruto da Revolução Industrial, imprimiu às cidades europeias um crescimento desestruturador. As teorias arquitetônicas então formuladas, buscando combater a desigualdade intolerável que se estabelecia, idealizaram propostas de produção industrializada da habitação e cidades perfeitamente programadas. Ao homem-tipo, a arquitetura respondeu com a cidade-tipo. Habitar, trabalhar, divertir, circular– cada função em seu lugar. Tudo previsto, tudo resolvido, todos felizes.
Nessa cidade da igualdade, o espaço parao encontro das diferenças não faria o menor sentido. Ao contrário, a expressão urbanística deveria contemplar os valores do homogêneo. Essa idealização do início do século 20 influiu poderosamente no sistema urbano brasileiro, desenvolvido após os anos 1950. Brasília é o exemplo mais que perfeito.
Mas, as respostas modernistas seriam consistentemente contestadas já nas décadas seguintes. Um livro essencial foi Morte e vida das grandes cidades, lançado em 1961 pela norte-americana Jane Jacobs (1916-2006), a que se seguiram estudos do austríaco Christopher Alexander, do norte-americano Robert Venturi, do italiano Aldo Rossi (1931-1997) e de tantos outros.
É justamente nesse período, de expansão do sistema urbano brasileiro, que nossas cidades reiteram os conceitos já sob contestação. O privilégio ao transporte sobre pneus (ônibus e automóveis) é um de seus esteios. Somam-se a ele, fortemente correlacionados, o estímulo ao aumento da área ocupada pela cidade e à baixa densidade. Nesse modelo, destacam-se os subúrbios monofuncionais, pobres de vida urbana, mesmo quando encapsulados nos condomínios de alta renda. O comércio de rua, animador do espaço público, é tragado pelos shopping centers.
Novas cidades ou expansões das existentes seguem esse padrão. É o caso de Palmas, capital do Tocantins, ou da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Trechos tradicionais das cidades são rendidos ao trânsito pesado, de ônibus displicentes e ruidosos, em um mar de automóveis. Avenidas outrora bonitas, bem dimensionadas, com escala agradável, transformam-se em meros corredores de tráfego. Como não reconhecer essa situação em nossas cidades?
Agora, quando entra em cena o tema da sustentabilidade, quando nos preocupa o mundo que iremos legar aos nossos filhos, não há como desconhecer que o mundo urbano vive momento crucial. As expansões exageradas não apenas são predatórias do ambiente natural, como, ao promover o isolamentoentre funções e entre estratos sociais, desqualificam a vida urbana. O espaço público perde vitalidade. Mal mantido, poluído, descaracterizado, enfraquece-se a identidade coletiva nele representada. Enfraquece-se a cidade como lugar da política.
Cidades mágicas são aquelas que nos encantam no trivial de sua vida urbana, lembradas pelo poder de suas ruas. É o “movimento”, diria o emigrante. É essa possibilidade da interação social, da troca entre os diferentes, da diversidade, que se coloca como a qualidade essencial das cidades, que precisamos defender.


Badintra Balankura - "City Movement"


Expansão versus equidade


*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 283.
Sérgio Magalhães
O ideário civilizatório contemporâneo tem na cidade o seu espaço de conformação. Mas, em um mundo majoritariamente urbano, estará a própria cidade sendo promovida em acordo com a igualdade, a tolerância e a equidade?
Desde o alvorecer do urbanismo, no século19, as teorias arquitetônicas têm proposto uma cidade que corresponda tanto às mudanças decorrentes da industrialização como aos conceitos democráticos da modernidade. Com a certeza de que o futuro seria róseo, o esforço modernista foi pela concepção de um modelo urbanístico capaz de corresponder ao paraíso. Somente novas cidades funcionais, por sobre as antigas se necessário, seriam o passaporte para a felicidade. Obviamente, a resposta idealizada demonstrou-se insubsistente.
A velha cidade cumpriu um relevantíssimo papel. Proporcionando melhora nas condições sanitárias, educacionais e laborais, reduziu-se a mortalidade infantil e expandiu-se a expectativa de vida, promovendo o exponencial aumento demográfico que caracterizou o mundo urbano no último século. As cidades são co promotoras desse desenvolvimento, embora atingidas em sua qualidade média.
No Brasil, em 50 anos, multiplicou-se nove vezes a população urbana: de 18 milhões de citadinos a 165 milhões, em 2010.
Os modelos paradisíacos funcionalistas, como o de Brasília, não adquiriram hegemonia nas velhas cidades europeias. Mas as cidades dos países que alargavam fronteiras, como os da América, sim, submeteram-se, em busca do eldorado urbano. No caso,a miragem se deslocava sobre automóveis para os subúrbios cada vez mais distantes– e menos densos.
Aqui, as grandes cidades brasileiras aboliram o transporte coletivo sobre trilhos e adotaram o modelo rodoviário, por ônibus, em articulação com o aumento da frota de automóveis. O argumento é: ônibus e carros implantam-se mais facilmente do que trens e bondes, basta haver ruas. Assim, novos loteamentos puderam ocorrer em áreas afastadas das antigas linhas estruturantes da cidade, permitindo a ocupação para além da mancha urbana. Quase sempre deixando de permeio vastos vazios, à espera de valorização.
Sobre trilhos, a cidade se estrutura de um modo; sobre pneus, de outro. No primeiro, a densidade populacional é desejável; no segundo,é aparentemente irrelevante. De fato, a ocupação em baixa densidade é contrária ao transporte coletivo. Não lhe dá condições de frequência e de preço. Também é contrária às infraestruturas urbanas, com altos custos para implantação e manutenção.
Diferentemente das cidades norte-americanas, onde o subúrbio é rico, nas nossas cidades a expansão é pobre e sem infraestrutura. Nas metrópoles, as áreas de miséria estão geralmente nas periferias.
Nesse caminho brasileiro, o Rio é cidade exemplar: expandiu-se e reduziu sua densidade populacional em 40%, desde 1960, alcançando hoje índices do século 19 – quando a vida urbana exigia pouca infraestrutura.
Expansão desse gênero tem profundas consequências sobre o futuro da sociedade. Teremos menores condições de democratizar a cidade, de equalizar oportunidades de educação, emprego, saúde e segurança. A ocupação expandida em baixa densidade, pobre ou rica, debilita o sistema urbano e adia indefinidamente a chegada da equidade e do desenvolvimento.
Penso que se esboça um sentimento coletivo de revisão desse modo predador. Arquitetos, urbanistas e pesquisadores urbanos têm defendido uma reversão de modelo, em benefício de cidades mais compactas, mais sustentáveis, que preservem a qualidade maior da vida urbana, a interação social.
Agora, sem rejeitarmos a cidade existente ,estamos em busca de garanti-la como espaço democrático, sintonizado com o ideal de tolerância e equidade.


terça-feira, 2 de agosto de 2011

Segura e sem grades

Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 30/07/2011
O controle da inflação permitiu que uma agenda de premências, a que estavam submetidos os brasileiros, desse lugar a uma agenda de possibilidades. Nesta semana, o Brasil tornou-se o quinto maior destino de investimentos internacionais. Grandes recursos tornam-se disponíveis para realizações antes inimagináveis.
Ter ou não ter inflação já não deriva de causas naturais ou metafísicas. Apesar de os componentes financeiros serem intangíveis, nós sabemos que eles são construídos. No entanto, em assuntos com grande presença material, como é uma cidade, nem sempre estamos atentos às causas que produzem os efeitos em nosso cotidiano. Parecem-nos frutos da natureza, embora sejam frutos da cultura.
Lembro de um adolescente carioca dos anos 1990 que se mostrou surpreso quando seu pai comentou sobre o absurdo de as calçadas estarem tomadas pelos automóveis :“Mas não é onde devem ficar?” Ao longo da vida do jovem, os passeios tinham sido “naturalizados” como lugar de veículos.
Estacionar automóveis nas calçadas parecia inevitável no Rio do fim do século. E, para muito poucos, era um despropósito levar-se o cachorro a passear e brindar as áreas entre carros com “lembranças”do programa.
No entanto, a situação mudou, para melhor.
Fumava-se em ônibus, em restaurantes e até em hospitais. A rua estava disponível para a fumaça negra emitida pelos coletivos. A Lagoa recebia esgotos sanitários in natura e as línguas negras chegavam à areia das praias, as quais ainda serviam de lixeira a céu aberto. Nas eleições, cartazes colados por todo lado. Tudo isto era natural.
A percepção de naturalização decorre muitas vezes da repetição reiterada, que nos faz crer o fenômeno como imutável. Mas, em outras situações, trata-se de um modo de sublimar determinado problema.
Em 1937, quando o Rio já tinha quase 300 mil moradores em favelas, um decreto proibiu que elas constassem do mapa da cidade. Não estando no mapa, talvez inexistissem... Para melhorar o trânsito, suprimiu-se o bonde. Seria natural que o automóvel fechasse as ruas. E, quando se percebeu que o setor financeiro se mudava para São Paulo, proibiu-se construir novas moradias no Centro da cidade— imaginando-se que a área ficaria disponível para grandes corporações financeiras. Nem estas vieram, nem moradores— e o esvaziamento consolidou-se.
Deixar o problema prosseguir em busca de sua naturalização ou impor uma solução meramente ideológica, são ações divergentes na aparência apenas.
Jane Jacobs, a americana que escreveu o livro seminal “Morte e vida de grandes cidades”, alertava, a partir da experiência dos Estados Unidos, que não necessariamente a abundância de meios produz melhores cidades. Em seu país, o crescimento econômico também construiu cidades inóspitas e ambientes degradados.
É que as razões da boa cidade não são encontráveis em prateleiras de mercado, prontas ao uso. Mas são constituídas na complexidade da vida coletiva, no âmago da cultura. Com bons princípios, nos dizia Jacobs. E com bons projetos.
Se, felizmente, temos hoje possibilidades de investir em nossas cidades, nem por isso podemos perder energias e recursos. Nosso passivo urbanístico e ambiental não é pequeno. A Lagoa está em franca recuperação. Mas a Baía de Guanabara ainda espera o seu reerguimento.
A cidade metropolitana do Rio, deixando-se como está, acelerará o processo de expansão predatória de ocupação do território e de ampliação da miséria. Mas é possível estancá-lo. Precisamos institucionalizar políticas setoriais metropolitanas, como a de transporte público. É bom o exemplo de São Paulo, que há mais de trinta anos mantém carteira de projetos no BNDES em busca de financiamento para o metrô. ”Naturalmente” os trens não se transformam em metrô; com projetos, sim.
Tampouco é apenas com grandes investimentos que a boa cidade se constrói. Nossas calçadas já não são dos automóveis! Contudo, nosso espaço público ainda é maltratado,cheio de obstáculos. Se tivermos o desejo de espaços públicos qualificados, bons projetos contarão com a participação cidadã para a sua implantação.
Foi possível impedir que se fumasse nos ônibus e evitar a fumaça negra.Se tivermos projeto, poderemos alcançar no médio prazo que nossos ônibus sejam amigáveis, confortáveis, com acessibilidade universal, silenciosos: que sejam urbanos.
Ainda por longo tempo nossas cidades terão uma agenda de premência. Saneamento, mobilidade e habitação são temas cruciais. Mas já é possível objetivarmos uma agenda paralela de ações mais disseminadas, em que também seja ampliada a nossa adesão à cidade e evidenciadas as energias que a população está disposta a oferecer. O carnaval que voltou às ruas é uma evidência do desejo carioca por uma cidade aberta, livre, alegre. Segura e sem grades.