segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Cidades melhores para as pessoas

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 09/11/2013
Sérgio Magalhães

Há 50 anos realizou-se no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, a sessão de encerramento de uma série de encontros nacionais dedicados ao tema urbano. Promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e intitulado Seminários de Habitação e Reforma Urbana, tornou-se um marco histórico pelo enfoque e pelas propostas, algumas ainda atuais.
A ênfase foi na moradia e na questão fundiária, em função da emigração do campo. Quitandinha propunha que a Reforma Urbana fosse incluída, em simetria com a Reforma Agrária, no rol das “reformas de base”, então dominantes na pauta política brasileira.
De lá para cá, o Brasil deixou de ser predominantemente rural e hoje 85% de seus 200 milhões de habitantes vivem em cidades. O país industrializou-se, tornou-se celeiro mundial, é potente em energia. É uma democracia.
Apesar de ser a sexta economia mundial, metade dos domicílios não tem esgoto adequado, a moradia é em sua maioria irregular, dezenas de milhões de brasileiros perdem horas diárias em um trânsito caótico; os serviços públicos (inclusive o de segurança) atendem apenas partes das cidades.

Por que o Brasil enfrentou desafios na economia, na produção, na política, e não foi capaz de fazê-lo em relação à cidade? 

A experiência demonstra que o crescimento econômico não é suficiente para superar as dificuldades urbanas. (Ao contrário, ele as pode agravar, como Jane Jacobs avaliou para as cidades norte-americanas ainda nos anos 1960.) Para supera-las, é preciso reconhecer os problemas, inclui-los na agenda política, assumir compromisso coletivo.
Sem os enfrentar, é o país que perde.
A cidade é o núcleo potencializador do mundo contemporâneo em suas áreas dinâmicas: economia, cultura, inovação, conhecimento, comunicação. É um equívoco imaginar-se o desenvolvimento nacional dissociado da qualificação das cidades.
No cinquentenário do primeiro evento de reforma urbana brasileiro, arquitetos e amigos da cidade voltam ao mesmo local para concluir novo ciclo de debates, desenvolvido ao longo de 2013 em diversos estados de todas as regiões do país. Intitulado Quitandinha + 50, identificou o cerne dos desafios a enfrentar como composto pelas questões ambientais, pela desigualdade e pela mobilidade.
Em desdobramento, o Q+50 propõe a criação de metas locais e nacionais para a universalização dos serviços públicos e do crédito habitacional diretamente às famílias. Considera que a mobilidade nas grandes cidades precisa estar baseada no pedestre e em rede de transporte público de alta capacidade. E, sob o ponto de vista da gestão, defende a participação e transparência nas decisões, com cidades permanentemente projetadas, como função de Estado, e não de governo; metrópoles com estatuto próprio; e licitação de obras públicas somente a partir de projeto completo. Cidades melhores, para as pessoas.

Mudaram os tempos, mudaram as ênfases – e as cidades carregam os problemas do século passado. Mas elas clamam por uma agenda pública que as conduza para a contemporaneidade.

UMA AGENDA PARA A CIDADE

Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 309 - novembro/2013


Há 50 anos, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, aconteceu a sessão de encerramento de uma série de debates nacionais dedicados ao tema urbano. Esse projeto, intitulado ‘Seminários de Habitação e Reforma Urbana’ e promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, é um marco histórico pela qualidade do enfoque e das propostas, algumas ainda atuais.
O “Seminário de Quitandinha” propunha que a reforma urbana fosse incluída, em simetria com a reforma agrária, no rol das ‘reformas de base’, então dominantes na pauta política brasileira. A ênfase era na moradia e na questão fundiária, em função da imigração do campo.
De lá para cá, o Brasil deixou de ser predominantemente agrário – hoje, 85% de seus 200 milhões de habitantes vivem em cidades. Temos 20 metrópoles e duas megacidades. O país industrializou-se, tornou-se celeiro mundial, é potente em energia. Somos uma grande democracia.
Deixamos para trás a cidade – modelada pela explosão demográfica, pela industrialização e pelo automóvel – do século 20, quando se acreditava que os problemas urbanos seriam solucionados com o crescimento econômico.
Chegamos ao século 21. Embora o Brasil seja a sexta economia mundial, metade dos domicílios nacionais não tem esgoto adequado, a moradia é em sua maioria irregular, dezenas de milhões de brasileiros perdem horas diárias em um trânsito caótico e os serviços públicos (inclusive o de segurança) atendem apenas partes das cidades. Encontramo-nos diante da cidade fragmentada, da cidade partida, da cidade dispersa.
Por que o Brasil enfrentou desafios na economia, na produção, na política e os encaminhou para a superação, e não foi capaz de fazê-lo em relação à cidade?
A experiência demonstra que o crescimento econômico não é suficiente para neutralizar as dificuldades urbanas – ao contrário, elas podem se agravar, como a jornalista e ativista Jane Jacobs (1916-2006) avaliou para as cidades norte-americanas ainda na década de 1960. O entendimento de que a cidade melhora ou piora conformr as oscilações da ecomia, da política ou da demografia, é visão de uma parte da questão, e não necessariamente corresponde à mais importante.
Sabe-se que a cidade é o núcleo potencializador do mundo contemporâneo em todas as suas áreas dinâmicas: economia, cultura, inovação, conhecimento, comunicação. Ao contrário do que antes vigorava, é noção equivocada imaginar o desenvolvimento nacional sem a simultânea qualificação da cidade. Isto é, sem a universalização dos serviços públicos (inclusive o de segurança), sem espaços públicos bem estruturados e vivos, e, sobretudo, sem a redução das brutais desigualdades intraurbanas.
Não há fórmulas mágicas para enfrentar os problemas ambientais, da mobilidade e da desigualdade.
Neste mês, arquitetos e amigos da cidade voltam ao Quitandinha para concluir um ciclo de debates urbanos realizado ao longo de 2013, intitulado ‘Q+50’. Mudaram os tempos, mudaram as ênfases – e as cidades carregam os problemas do século passado. Mas elas clamam por uma agenda pública que as conduza para a contemporaneidade.

Linha de continuidade



Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 308 - outubro/2013

A mágica das cidades está em seus edifícios, em suas ruas e na mescla com seus acidentes geográficos; mas não é suficiente. Edificações, áreas públicas e geomorfologia conformam a imagem ambiental. Mas a cidade ainda não tem alma.
 “Que será Buenos Aires?”, pergunta em poema o escritor portenho Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, o que as fachadas ocultam, é o meu inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
É no uso, nas interrelações que estabelecemos com as coisas e com as pessoas ao usufruirmos o espaço urbano, que construímos nossa identidade e nossa memória coletivas. A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana. Também fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar satisfatórias condições de habitação e mobilidade.
A defesa desses valores tem assumido crescente relevo e eles têm se afirmado na consciência coletiva como elemento central de nossa contemporaneidade.
No entanto, há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado. Tal carência, por óbvio, não se apresenta distribuída igualmente no tecido urbano, havendo enormes assimetrias na prestação dos serviços públicos – que se manifestam no domínio territorial por bandidos armados de parcelas significativas de áreas pobres das grandes cidades; na falta de saneamento para quase metade dos domicílios urbanos brasileiros; nas dificuldades crescentes na mobilidade das metrópoles e mesmo nas médias cidades; entre outros.  Na medida em que as exigências contemporâneas aumentam e se complexificam e os serviços públicos não as acompanham adequadamente, esse descompasso implica em desigualdades sociais que se acentuam.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, essas assimetrias não podem ser apenas constatáveis a cada pesquisa. Elas precisam servir como base para políticas públicas que se dirijam a assegurar o pleno direito à cidade. Haver um bairro dominado por bandidos armados não pode ser “naturalizado” – sobretudo depois da experiência das UPPs, no Rio de Janeiro. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.

Certamente, a universalização dos serviços públicos há de ser um compromisso coletivo que precisa ter consequências práticas. Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que feitas de concreto. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços comuns, a sua tênue linha de continuidade.