Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 308 - outubro/2013
A
mágica das cidades está em seus edifícios, em suas ruas e na mescla com seus
acidentes geográficos; mas não é suficiente. Edificações, áreas públicas e
geomorfologia conformam a imagem ambiental. Mas a cidade ainda não tem alma.
“Que será Buenos Aires?”, pergunta em
poema o escritor portenho Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é
próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”,
“é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta
amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo
secreto dos quarteirões, os últimos pátios, o que as fachadas ocultam, é o meu
inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu,
aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
É
no uso, nas interrelações que estabelecemos com as coisas e com as pessoas ao
usufruirmos o espaço urbano, que construímos nossa identidade e nossa memória
coletivas. A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu
desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa
condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana. Também fundamenta o
direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba
o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a
disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve
assegurar satisfatórias condições de habitação e mobilidade.
A
defesa desses valores tem assumido crescente relevo e eles têm se afirmado na
consciência coletiva como elemento central de nossa contemporaneidade.
No
entanto, há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade
desses deveres de Estado. Tal carência, por óbvio, não se apresenta distribuída
igualmente no tecido urbano, havendo enormes assimetrias na prestação dos
serviços públicos – que se manifestam no domínio territorial por bandidos
armados de parcelas significativas de áreas pobres das grandes cidades; na
falta de saneamento para quase metade dos domicílios urbanos brasileiros; nas
dificuldades crescentes na mobilidade das metrópoles e mesmo nas médias cidades;
entre outros. Na medida em que as
exigências contemporâneas aumentam e se complexificam e os serviços públicos
não as acompanham adequadamente, esse descompasso implica em desigualdades
sociais que se acentuam.
Se
a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e
simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, essas assimetrias não
podem ser apenas constatáveis a cada pesquisa. Elas precisam servir como base
para políticas públicas que se dirijam a assegurar o pleno direito à cidade.
Haver um bairro dominado por bandidos armados não pode ser “naturalizado” –
sobretudo depois da experiência das UPPs, no Rio de Janeiro. Milhões de
cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando
sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a
sociedade.
Certamente,
a universalização dos serviços públicos há de ser um compromisso coletivo que
precisa ter consequências práticas. Não se trata de reinventar a cidade, como
pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático
reorganizar as relações de decisão e poder nas metrópoles e nas grandes cidades
brasileiras.
Nossas
cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das
idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social,
cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas,
hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As
cidades mudam sempre, ainda que feitas de concreto. Paradoxalmente, está em seu
espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços
comuns, a sua tênue linha de continuidade.
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