segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Linha de continuidade



Sérgio Magalhães

*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 308 - outubro/2013

A mágica das cidades está em seus edifícios, em suas ruas e na mescla com seus acidentes geográficos; mas não é suficiente. Edificações, áreas públicas e geomorfologia conformam a imagem ambiental. Mas a cidade ainda não tem alma.
 “Que será Buenos Aires?”, pergunta em poema o escritor portenho Jorge Luís Borges. Primeiro, descreve o que lhe é próximo: Buenos Aires “é o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai”, “é a mão de Norah”, “é aquele arco da rua Bolívar”. Mas, a seguir, o poeta amplia o entendimento: “Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, o miolo secreto dos quarteirões, os últimos pátios, o que as fachadas ocultam, é o meu inimigo, se eu o tenho, (...) é o estranho, o bairro que não é teu nem meu, aquilo que ignoramos e aquilo que queremos.”
É no uso, nas interrelações que estabelecemos com as coisas e com as pessoas ao usufruirmos o espaço urbano, que construímos nossa identidade e nossa memória coletivas. A cidade é minha íntima e é minha desconhecida, íntima de meu desconhecido e desconhecida dele, íntima talvez de meu inimigo, se eu o tiver.
Essa condição nos faz, a cada um, protagonista da vida urbana. Também fundamenta o direito à cidade – que, na democracia, é indissociável da cidadania. Ele engloba o viver em segurança e liberdade (sabemos o quanto custa a violência!); inclui a disponibilidade das infraestruturas essenciais à vida civilizada e deve assegurar satisfatórias condições de habitação e mobilidade.
A defesa desses valores tem assumido crescente relevo e eles têm se afirmado na consciência coletiva como elemento central de nossa contemporaneidade.
No entanto, há clara evidência da insuficiência dos governos em suprir a cidade desses deveres de Estado. Tal carência, por óbvio, não se apresenta distribuída igualmente no tecido urbano, havendo enormes assimetrias na prestação dos serviços públicos – que se manifestam no domínio territorial por bandidos armados de parcelas significativas de áreas pobres das grandes cidades; na falta de saneamento para quase metade dos domicílios urbanos brasileiros; nas dificuldades crescentes na mobilidade das metrópoles e mesmo nas médias cidades; entre outros.  Na medida em que as exigências contemporâneas aumentam e se complexificam e os serviços públicos não as acompanham adequadamente, esse descompasso implica em desigualdades sociais que se acentuam.
Se a cidade é “o último espelho que reproduziu o rosto de meu pai” e simultaneamente a “rua que nunca pisei”, como diz Borges, essas assimetrias não podem ser apenas constatáveis a cada pesquisa. Elas precisam servir como base para políticas públicas que se dirijam a assegurar o pleno direito à cidade. Haver um bairro dominado por bandidos armados não pode ser “naturalizado” – sobretudo depois da experiência das UPPs, no Rio de Janeiro. Milhões de cidadãos, todos os dias, perdendo três ou quatro horas no trânsito, ou morando sem infraestrutura adequada, não é um problema só deles – é de toda a sociedade.

Certamente, a universalização dos serviços públicos há de ser um compromisso coletivo que precisa ter consequências práticas. Não se trata de reinventar a cidade, como pensavam os modernos ante o avanço demográfico. Mas é um impositivo democrático reorganizar as relações de decisão e poder nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras.
Nossas cidades precisam ser pensadas e planejadas para além dos governos e das idiossincrasias dos mandatários eventuais; em respeito à diversidade social, cultural e de interesses, tampouco podem ficar reféns de pressões hegemônicas, hoje ditadas pelos desejos imobiliários e rodoviaristas.
As cidades mudam sempre, ainda que feitas de concreto. Paradoxalmente, está em seu espírito, composto pelos sonhos de todos e pela vivência de seus espaços comuns, a sua tênue linha de continuidade. 

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