sábado, 26 de novembro de 2011

Nem mais, nem menos

Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 19/11/2011
O Rio de Janeiro comemora a retomada do território da Rocinha pelas forças do Estado brasileiro. É a 19ª parcela da cidade trazida para o domínio constitucional.
Quais serão os próximos desafios?
Ao longo de todo o processo de urbanização brasileira, o país legal convive mal com a habitação popular.
No início da República, a população carioca crescia exponencialmente e havia escassez de moradia; o ambiente sanitário era precário. Mas o governo optou por erradicar os cortiços.Não foi a falta de casas, ou de esgotos, que foi identificada como “o problema”. A principal obra do primeiro prefeito republicano do Distrito Federal foi a demolição do famoso cortiço Cabeça de Porco, onde viviam duas mil pessoas.Com materiais da demolição, alguns dos desalojados iniciaram uma primeira favela,junto à Providência.
Por toda República Velha (1889-1930) prevaleceu a ideia de que a habitação era uma questão privada — e a construção para aluguel seria um bom caminho.
No paralelo, com o sucesso da erradicação dos cortiços, as favelas tiveram ímpeto.
Quando o urbanista francês Alfred Agache fez o primeiro Plano Diretor para o Rio de Janeiro, em 1930, informou que as favelas abrigavam cerca de 20% da população. Seriam um fenômeno transitório, que o desenvolvimento econômico erradicaria.
Apenas durante o governo do prefeito Pedro Ernesto (1935-36) as favelas foram tratadas diferentemente,inaugurando-se a primeira escola pública em favela, na Mangueira. Preso o prefeito, acusado de subversivo, lei de1937 proíbe que as favelas constem do mapa da cidade: da transitoriedade, passam à clandestinidade.
O Estado Novo (1937-45) sai da omissão republicana e considera a habitação uma questão social, outorgando-se a responsabilidade pela moradia popular. Já não há cortiços; favelas“inexistem”; com as Leis do Inquilinato,o caminho do aluguel é esvaziado. Resta construir a habitação saudável, e o modelo do conjunto residencial é o escolhido. Não é o crédito para as famílias comprarem ou construírem;tampouco é o financiamento para a produção; agora, a política é ser o Estado o promotor da moradia.
Mas tal atribuição, ainda hegemônica,fracassou. Foram construídos80% dos domicílios brasileiros à margem dessa política, com recursos exclusivos das famílias, em loteamentos,favelas e bairros inteiros. Evidentemente precários,com carência de infraestrutura,de mobilidade e de serviços públicos. Foi o jeito de as famílias pobres terem moradia na cidade brasileira.
No Rio, as favelas abrigam quase 20% da população, tal como em Agache — mas agora são um milhão de cariocas. Foi com o Plano Diretor, de 1992, e o Programa Favela-Bairro que deixaram a clandestinidade e voltaram ao mapa da cidade.
Já então grande parte delas estava subjugada por um “estado paralelo”,imposto por bandidos armados, traficantes ou milicianos, detentores do território e do domínio de muitas atividades produtivas.
Em 2008, como ponto de inflexão política nesse longo processo, prioriza-se a retomada de territórios brasileiros subjugados. O governo do Estado formula o programa das UPPs e busca o apoio do governo federal.É uma iniciativa que considera a segurança na sua fundamenta-ção constitucional: as favelas fazem parte da nação brasileira.
A Rocinha tem um enorme significado,por sua inserção geopolítica, por seu tamanho e população. Como nas demais favelas, há um passivo funcional a superar com obras de urbanização,contenção de encostas, entre tantas. Há aspectos conceituais também importantes, no reconhecimento de valores espaciais, econômicos e culturais preexistentes, produtores de uma forma urbana diferenciada, a serem tratados de modo a preservar sua vitalidade.
Finalmente, há uma categoria essencial, diria “civilizatória”.
A plena vigência da Constituição nesses territórios não é tarefa singela— sabemos. Nesse processo político a democracia brasileira alcança um novo patamar, explicitando que todos conformamos um mesmo país, sob mesmas leis, sob mesmos ideais. Esperamos que se feche o ciclo, de mais de um século, em que a convivência entre a República e a moradia popular foi, em geral, conflitante.
Mas manter o Estado prestando todos os serviços públicos será o maior dos desafios — a maior emais importante obra.
A Rocinha e demais áreas libertadas precisam ser tratadas com maturidade política, institucional e urbanística;benesses, pirotecnias e exigências inalcançáveis não consolidarão o processo. Tivemos ao longo do tempo regras rígidas e ação complacente. Iludimo-nos, idealística e ideologicamente. Tal como a cidade do asfalto, precisam de ordenamento que esteja em acordo comas possibilidades, para ser cumprido. Como os bairros vizinhos, que os serviços públicos sejam efetivos— e permanentes. Nem mais, nem menos.

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