Sérgio Magalhães
As últimas semanas foram ricas em cenas inesquecíveis na
propaganda de TV. Destaco o ‘comercial’ do político de ficha controversa que se
auto-proclama um lutador pela ética; ou a autoridade que recomenda o voto em
candidato cheio de ruindade e o apresenta como ‘o melhor do país’.
Lembro ainda o protagonizado por atriz de grande credibilidade que exalta a vida em um condomínio fechado
denominado “Ilha” – que não é cercada por água, mas ‘isolada’ da cidade.
São cenas em que
a ficção assume-se como realidade e embaralha nosso acervo de valores.
Nas mesmas semanas, as eleições se desenrolaram passando
ao largo da questão urbana. Em um país onde quase toda a população mora em
cidades, é a realidade parecendo ficção.
Onde ficaram as dificuldades de mobilidade? A
precariedade de moradia e de saneamento? A degradação dos espaços urbanos? A
escassez dos serviços públicos? A insustentabilidade do modelo de expansão das
cidades?
Quando algum desses temas é citado na propaganda política,
fala-se em recursos financeiros ou em quantitativos; nada se diz sobre conceitos
e qualidade dos investimentos.
O caso da mobilidade é exemplar: no Brasil urbano, embora
o transporte coletivo seja o mais demandado pela população, os governos gastam
14 vezes mais em despesas relacionadas ao transporte individual do que ao
transporte coletivo.
Também na habitação, seja com o Minha Casa Minha Vida ou
com os condomínios tipo ‘ilhas’. A jornalista norte-americana Jane Jacobs reconhecia
que apenas recursos não são suficientes. “Veja o que
construímos com bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram
núcleos de delinqüência, piores que os cortiços que pretendiam substituir;
conjuntos habitacionais de renda média que são monumentos à monotonia;
conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade; vias expressas que
evisceram as grandes cidades. Isto não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.”
Esse desabafo de
Jacobs é de 1961, em livro sobre a experiência norte-americana. Alguma semelhança com os modelos do
finado BNH, que retornam fora de hora neste Brasil do século XXI?
O BNH (1964-86) financiou 4,4 milhões de domicílios e o
MCMV (2009-14) financiou 1,5 milhão. Os números impressionam. Mas representam apenas
30% e 20%, respectivamente, das moradias construídas em cada período. Somando BNH,
MCMV, CEF e todo o mercado imobiliário, financiou-se menos de ¼ dos 50 milhões
de novos domicilios urbanos desde 1964. Contextualizados, o brilho diminui e não
explicam a adoção de modelos falidos que criam guetos e induzem à expansão
insustentável das cidades.
Contemporâneo de Jacobs, o historiador italiano Leonardo
Benévolo também avaliava não haver determinismo entre crescimento econômico e
melhora da cidade – mas interdependência. Para ele, a melhora urbana é um dos
modos para se alcançar o equilibrio geral.
Tais conceitos explicitados na segunda metade do século
passado não cairam no vazio. A experiência recente dos países mais
desenvolvidos demonstra que a qualificação dos seus sistemas urbanos foi um dos
esteios da melhora geral que experimentaram nas últimas décadas.
As boas cidades são os verdadeiros motores deste novo século.
Esperemos que nestes segundos turnos das eleições elas venham
para o palco dos debates. Talvez a realidade não reluza tanto quanto a ficção
sugere. Mas reconhecer os problemas é caminho para o seu enfrentamento.
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