domingo, 31 de outubro de 2010

O Centro e seus vazios (III)


Eduardo Cotrim
A natureza feminina das cidades emerge, elas se tornam mais completas, quando distinguem, nitidamente, os lugares coletivos oníricos, dos pragmáticos da funcionalidade urbana.


Diferente dos lugares de uso, como os corredores de tráfego, não há modelos para os lugares que privilegiam o usufruto, ainda que no reino das superfícies públicas, os espaços urbanizados do usufruto sejam historicamente vazios.
Os vazios suportam interações conscientes e não conscientes, já que acolhem e promovem os usufrutos estéticos, ambientais, funcionais e os dos seus significados.
Entre os personagens dos vazios urbanos, as praças já seriam suficientes para merecer uma classificação com nomes diferenciados, pela variedade de suas expressões, personalidades e modos como são apropriadas.
O Centro do Rio, como o de tantas outras cidades, é pontilhado por praças e por inúmeros vazios – parques, pequenos largos, becos, revelados pelos volumes construídos. Os vazios frequentemente não predominam em superfície e se comportam como elementos promovidos pelo todo ao redor.

Em algumas outras culturas ocorre o vazio predominante, como nas cidades dos Waimiri Atroari e dos Yanomamis, embora estes distribuam o cheio de forma antagônica. Entre novaiorquinos e cariocas, o antagonismo se dá na distribuição do vazio.

As cidades que têm o não-cheio distribuído em praças, em largos, em becos de expressões variadas, que, portanto, agregam maior riqueza morfológica ou têm mais chance de agregá-la, têm também a vantagem de possuir os vazios como elementos extras de identidade do espaço urbano.
O Centro do Rio é assim, mas ainda há algo a ser feito - pelos urbanistas, arquitetos e ambientalistas, principalmente, para que se restabeleça, de forma plena, a identidade de gênero da Cidade - o nosso centro - para o resgate das potencialidades de usufruto, consciente ou involuntário, dos vazios, pelos cidadãos: entender e tratar nossas praças, largos e becos, observá-los, pesquisá-los, iluminá-los, interferir em seus interiores e entornos contíguos, os físicos e os de posturas, enfim, o que os bons projetos costumam fazer.

Imagens na ordem da apresentação:
Largo de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro
Praça do Vaticano
Praça Imam, Esfahan
Rua de Havana
Escadaria Selarón, Rio de Janeiro
Aldeia Waimiri Atroari, Amazonas
Aldeia Yanomami, Amazonas
Nova York
Rio de Janeiro


5 comentários:

  1. Arquitetura é povo nas ruas

    Fazem os desavisados uma distinção, pelo uso autônomo dos termos, entre arquitetura e urbanismo, remetendo-nos a idéia de prédios e edificações versus cidade. Não me encanto com essa especialização e sei bem que os arquitetos incorporam ambos os termos num único: arquitetura. Fico com eles e dou adeus a uma dicotomia que se mostra tosca e inútil.

    O que me encanta na arquitetura é ver que conceitos e idéias expressam de forma coerente e harmônica o que queremos de nossas cidades e vilarejos – que funcionem, seja agradável e bela. Tomo como um dos elementos fundamentais em arquitetura a tríade: trabalho, residência e comércio que poderia ser complementada pelo elemento lazer, mas não é, de fato, segundo meu juízo, essencial, até porque procuramos morar sempre em lugar aprazível, perto de praias ou lagos (erro crasso que Lúcio Costa ou Niemeyer cometeram no caso de Brasília – o lago ficou distante das moradias e para piorar apenas para os ricos, em caricatura grotesca do que é ser comunista brasileiro). É interessante levar à exaustão as implicações dessa tríade, dando-nos o caráter prospectivo tão louvável às ciências, demonstrando sutilmente que os modelos em arquitetura são precisos, embora aparentemente frouxos. Antes, porém, cabe ressaltar que é mais provável a ausência de um desses elementos do que os outros dois. É o caso do trabalho. Ele pode ficar distante dos elementos moradia e comércio. É o caso típico do subúrbio americano. Da barra da Tijuca e de Brasília, notadamente o Plano Piloto.

    A primeira implicação fundamental é que, na ausência de um desses elementos, uma perturbação séria se imporia à dinâmica da cidade. Se há trabalho apartado das residências e do comércio, a conseqüência típica é ausência de povo na rua. Fenômeno latente nas ruas do plano piloto ou na Barra da Tijuca. Nas quadras de Brasília, que compõem o Plano Piloto, simplesmente não existe povo na rua e a situação só melhorou um pouco com a vinda do metrô. Povo na rua é um objetivo de qualquer arquitetura planetária. É assim nas grandes cidades da Europa, pra onde vão a maioria dos turistas. É assim na Ásia e em muitos outros lugares. A segunda implicação dessa tríade em comunhão capenga é a falta de dinamismo que a cidade se defronta pela ausência do motor dos negócios que são os indivíduos em sua constituição múltipla e diversa perambulando pelas ruas. Enfim, a cidade se expressa pelo formigueiro móvel, cada uma buscando seus interesses em formação de uma coletividade única.

    Fazendo coro ao conceito de povo na Rua, outro conceito em arquitetura que descobri recentemente, através do renomado arquiteto Paulo Mendes Rocha, é o do acaso em que as pessoas se defrontam com situações inusitadas e de ótimo efeito colateral, como o de ir a banca do jornal ou ao botequim e encontrarmos caras conhecidas e amistosas; de passearmos na cidade e encontrarmos aglomerações espontâneas em descoberta de algo bom ou agradável. É pela integração do trabalho ao comércio que, submetidos ao acaso, podemos variar nossa caminhada cotidiana em que se lancha ou almoça nas ruas, prescindindo-se de uma das formas mais rudes de exploração: o trabalho doméstico que amarra pessoas humildes à armadilha da pobreza.

    Em essência, a arquitetura reflete nossa mentalidade, nossa política e o espírito solidário que verdadeiramente emana de nossas almas. Não podemos nos desviar do que milenarmente está consagrado, como Paris, Madri, Londres e tantas outras cidades, em, prova inconteste, pela sua arquitetura esplendorosa, de que o bem vence o mal. Para isso, se necessário for, coloquemos abaixo, em exemplo didático e midiático, toda a esplanada dos Ministérios em Brasília que flagrante estampa rua sem povo.

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  2. Fiz as correções do meu comentário abaixo e como o tamanho excede o que aqui é permitido indico o seu local cibernético:
    chutandoalata.blogspot.com/

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  3. Prezado Leitor,
    Respeito suas ponderações sobre o que seja uma boa arquitetura, uma boa cidade, como também suas rejeições aos discursos que não o encantam. O ideal que temos buscado, urbanistas, para nossas cidades e vilarejos residiu no princípio das formas coerentes, na harmonia e na funcionalidade, semelhante às firmitas, utilitas, venustas e decorum vitruvianos – como no de a forma segue a função. Esses e outros conceitos, dos clássicos aos modernos são peças arqueológicas, necessariamente visitadas, mas já curiosas na polifonia contemporânea. Os clássicos partiam de normas precisas de proporcionalidades geométricas, de tratados e os modelos modernos de formulação de doutrinas. O ideal buscado de cidade residiu também em tríades como a de trabalho-residência –comércio, mas a boa cidade tem sido afirmada por conceitos imprecisos, irredutíveis a três, meia dúzia ou sessenta vocábulos.
    O certo é que haveremos de encontrar o centro dessas preocupações, na literatura que relata a história dos pensadores da Cidade , que se inicia alguns milênios antes de Hippodamus de Mileto, mas que felizmente, ainda não se extinguiu.
    Nessa literatura, estará a cidade de Ur há uns 6.000 anos atrás – cidade agradável? Desagradável? Harmônica? Desarmônica? - que teria originado o termo Urbe, entre os gregos, provavelmente. Mas dada a nossa miopia histórica, também Paris antes e depois de Haussman, como Londres, antes e depois da Metropolitan Board of Works e Barcelona antes e depois de Cerdà. A tríade trabalho-comércio-residência é comum a essas três cidades e a outras tantas que estão entre as menos concorridas e prestigiadas no mundo.
    Lá pelos últimos capítulos dessa literatura, invariavelmente, Brasília de Lucio Costa e Niemayer – ora tida como uma conquista dos sonhos da modernidade, ora como aplicação fiel do arsenal de conceitos dos anos 30, que levaria a uma capital segregada nos seus tecidos espacial e social.
    Por fim, referindo-me ao tema central dos três artigos da sequência, quero enfatizar a intenção de que o principal beneficiário dos lugares públicos vazios da cidade, metaforizados nesse último como femininos, é o cidadão. Assim, esses lugares, que concentram a memória urbana, mas que acompanharam o processo recente de deterioração de muitos centros de cidades brasileiras, inclusive o do Rio, ao serem requalificados, fomentam novas melhorias e sobrevalorizam a história da cidade e do cidadão.

    Eduardo Cotrim Guimarães

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  4. Prezado Eduardo, não sei se a trilogia de que falei pode ser considerada um clássico e mesmo que seja isso não a desmerece e não deveria sugerir algo antiquado. Creio que é apenas um rótulo. Quanto aos demais conceitos sobre arquitetura, não posso opinar, porque não sei exatamente do que se trata. Pra finalizar, mantenho minha crítica: o espaço livre das superquadras em Brasília é um exagero. A forma de compensar esse exagero só vejo uma:povo na rua. O metrô foi uma solução. Até o momento não vi outra.

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