domingo, 19 de dezembro de 2010

A paz também é uma construção

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 18/12/2010
Sérgio Magalhães
O primeiro passo é a retomada do território. O momento seguinte precisa durar a eternidade: a presença definitiva do Estado.
A vida urbana contemporânea exige uma multiplicidade de bens, equipamentos, serviços, ações que dão suporte ao quotidiano de milhões de cidadãos em interação contínua. A cidade é o maior artefato da cultura, milagre da civilização que permite a convivência de interesses diversos, razões distintas, e, em muitos casos, de expectativas em conflito. Desse cadinho, ou desse caldeirão, emergem as possibilidades que fazem da cidade o desejo das multidões –e, também, das individualidades.
Mas é óbvio que essa complexa construção é social, não é da ordem da natureza. Na cidade, nada é natural, tudo é construído. Da paisagem ao objeto, tudo é cultura. Da destruição do meio-ambiente à sua preservação, tudo é pensamento e ato. A paz e a violência, também.
Nós nos encontramos, no Brasil, em tempo de inflexão, onde deixamos de ser inocentes e nos transformamos, porque queremos, em um país complexo. Entre as evidências está a produção de uma rede de cidades que engloba 85% da população. Temos duas dezenas de metrópoles. Duas megacidades abrigam 1/5 da população urbana.
As cidades crescem em complexidade e o Estado não as acompanha na prestação dos serviços que lhe são inerentes, como Justiça e Segurança.
Nossas cidades se expandem em áreas sem pleno Estado e deixam atrás outras com igual escassez. A demonstração está na violência urbana, mas também na carência de saneamento, transporte e habitação. É como ocorre tipicamente na Zona Norte suburbana carioca e igualmente em tantas metrópoles brasileira.
Sabemos que não é questão trivial dotar plenamente o conjunto urbano de serviços públicos adequados, mas é condição necessária ao desenvolvimento de um país que se proponha moderno, atuante globalmente. Para além, contudo, a democratização da cidade é uma imposição ética.
Nada é natural na cidade. Por décadas foi construída a violência. Agora, a experiência nos alertou sobre a indissociabilidade dos fatos urbanos, o que não mais nos permite ignorar os desdobramentos predatórios que a anomia, mesmo que localizada, impõe sobre o conjunto social.
A paz também é uma construção. Tivemos muitas derrotas que abalaram a confiança coletiva. Contudo, há uma enorme vitalidade localizada no âmago da população que faz com que, mesmo em dificuldade, ela busque prosperar, estudar, se desenvolver. É evidência disso a produção habitacional autônoma e popular, que, sem estímulo ou financiamento, supera várias vezes as metas oficiais *. A cidade tem energia represada que pede liberação para a paz e o desenvolvimento.
É nesse âmbito que os acontecimentos no Complexo do Alemão podem sinalizar um novo olhar, onde a escassez de Estado passa a ser compreendida como o problema.
Com a experiência das UPPs, seguida da retomada da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão, a proteção constitucional dos territórios começa a assumir centralidade no desejo coletivo. Constrói-se o entendimento sobre a indispensabilidade do Estado brasileiro assumir-se em suas plenas responsabilidades. Se necessário, reformulando o que antes fora pactuado entre os três níveis federados de governo.
Garantir a integralidade dos territórios sob a égide da Constituição não é de interesse apenas local. Tampouco o é atributo somente de governo: envolve igualmente a sociedade –imprensa, academia, profissionais, associações. Mas a experiência nos diz que o Rio não deverá sustentar sozinho o patamar de constitucionalidade exigido. Não porque lhe faltem recursos financeiros, o que não é fato, como demonstrado há dias aqui neste jornal. Nem porque parte importante das causas da violência não se esgote em seus limites, sejam territoriais, jurídicos ou institucionais; o que, sim, é fato. Não é apoio que precisa, é co-responsabilidade que exige da União. Não por privilégio, mas para a promoção dos deveres exclusivos de Estado.
Garantida a base constitucional, abolida a barbárie, a vitalidade da população saberá prosseguir. Tal energia fará aflorar novos desafios: a institucionalização metropolitana, a recuperação suburbana, a urbanização dos assentamentos populares, um sistema de mobilidade contemporâneo, entre outras construções sociais. Mas já então à altura da civilização que queremos alcançar.

2 comentários:

  1. Sendo direto: os senhores são favoráveis a regularização do direito de propriedade para os favelados? Em outras palavras, os senhores apoiam a decisão de se conceder o título de proprietário aos atuais moradores das favelas cariocas?

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  2. Prezado Sérgio

    Fiquei impressionada com a densidade deste artigo publicado no Globo recentemente.

    Ele nos traz uma importante mensagem de fim de ano, para além da paz tão desejada e, com certeza, parte de uma construção social.

    Nos alerta sobre o papel do Estado que deve prover a cidade "plena" com todos seus atributos a todo e qualquer cidadão, reconhecendo os diversos territórios existentes, e acima de tudo, se fazendo presente.

    Reforça, também, a responsabilidade que a sociedade tem ao participar ativamente desta construção, conforme registrado no trecho abaixo:
    "Garantir a integralidade dos territórios sob a égide da Constituição não é de interesse apenas local. Tampouco o é atributo somente de governo: envolve igualmente a sociedade –imprensa, academia, profissionais, associações".

    Enfim, sinaliza ao Estado e à toda a sociedade alguns dos desafios que temos para a próxima década: garantir a todos uma cidade justa e equitativa, enfim o direito à uma "cidade inteira" (recado frequente deste blog).

    Parabéns!!!

    FELIZ 2011 a você e a toda equipe do CidadeInteira.

    Abraços,

    Angélica Benatti Alvim

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