sábado, 7 de maio de 2011

O debate da arquitetura

Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no Globo de 07/05/2011
A cidade é o maior artefato da cultura. E a cidade contemporânea é um fenômeno em dimensões tais que supera todas as experiências sociais precedentes.
O objeto da arquitetura deixou de ser o edifício excepcional que se construía artesanalmente e tornou-se o conjunto de intervenções modificadoras do ambiente construído. A arquitetura é a cidade contemporânea em suas múltiplas conformações, desde o domicílio familiar até às grandes estruturas ambientais em escala territorial.
Com a industrialização, em resposta ao desafio das grandes demandas,a arquitetura despiu-se dos cânones, dos ornamentos, das simetrias. Voltou-se para a efetividade. Uma nova estética foi proposta. O simples, o despojado, oracional assumiram o centro da beleza. Novas tecnologias foram concebidas, compatíveis com a multiplicação.
Tudo novo, nada do que fora herdado seria compatível com os novos tempos. Os arquitetos voltaram-separa cidades ideais e edifícios exemplares,os quais deveriam cumprir o papel de faróis do futuro.
Quando o tempo das certezas absolutas ruiu, percebeu-se que a cidade que resistira à avalanche destrutiva modernista tinha valores importantes a manter. Ela já não era mais necessariamente descartável. A cidade produzida pelas multidões se manifesta em toda sua concretude.
As edificações espetaculares não resumem a arquitetura que o século XX produziu. Mas se encontra na grande cidade um dos esteios do desenvolvimento que o mundo experimentou. Foi a cidade quem deu abrigo ao sonho urbano, quem permitiu o avanço da educação,da saúde, do lazer. Por precária com que possa ser percebida, é ela a grande arquitetura deste século XXI.
Mas não é única.
Os novos tempos, diferentemente do que imaginavam os modernos, não é o lugar da padronização, mas da diversidade. É a multiplicidade que caracteriza o ambiente contemporâneo. Assim, a arquitetura é também diversa, múltipla, e acolhe inúmeras manifestações. Ela é complexa no fazer e, obviamente, no ensinar. Já não se retém nos gestos geniais autônomos. Paisagem, escala, ambiente, patrimônio são atributos que ajudam a configurar uma arquitetura contemporânea que não se apoia mais na exceção, mas na qualidade em sinergia com o existente, na contiguidade. É uma nova ética e uma nova estética.
Mas nossas cidades permanecem sob tutela de legislação calcada nos velhos conceitos. Há uma verdadeira inércia epistemológica a promover obras que nascem velhas —onde os valores se apoiam em índices inespaciais, em contas imobiliárias, referenciados ao domínio do lote, não ao contexto. Ao objeto mais do que às suas relações.
Avultam objetos arquitetônicos absorvidos na autor referência. Construções exibicionistas, na ânsia de se afirmar em ícones, ainda que vazios de significado. Quase big brothers arquitetônicos, cujos 15 minutos de fama infelizmente se estenderão por décadas.
Especialmente dos equipamentos públicos, os quais carregam consigo uma representação social, é espera-da uma atenção ao espaço coletivo.
Nesse sentido, é bem-vindo o decreto do prefeito do Rio determinando que novas construções sejam previamente avaliadas quanto ao estarem em acordo com os ambientes que as acolhem. Ele por certo evitará que outras obras-primas da insolência ambiental sejam erguidas na nossa cidade. Será tanto mais desejável que, em passo seguinte,o decreto seja transformado em lei, dando-lhe perenidade.
Estamos em um bom momento para essa reflexão
O país está crescendo, grandes recursos são destinados à construção. Infraestruturas estão sendo projetadas, aeroportos, conjuntos corporativos, bairros inteiros. Mas é preciso que cada obra seja qualificadora do ambiente. Aí, no caso das obras públicas, suas escolhas não podem continuar sendo por menor preço de projeto. Pois, em um passo seguinte,para além de aditivos na construção, transformam-se em monumentos à desconsideração da cidade.
Precisamos incorporar a dimensão contemporânea da sustentabilidade, seja na produção edilícia ou na urbana. Nesse aspecto, desde a década de 1990, o país tem tido boas experiências, o Rio, em especial, com intervenções qualificadoras do ambiente existente. Programas de urbanização de favelas e os de tratamento ambiental de centros de bairros são exemplos que se disseminam.
Mas, por complexo que se tenha tornado o fato arquitetônico, é essencial que seja compreendido na sua inteireza cultural. E o debate das expressões-limites, das arquiteturas que nos encantam e das que nos agridem,é muito desejável.
O debate da arquitetura é um bom caminho para a cidade.

5 comentários:

  1. NO essencial concordo com o artigo. Tive a impressão de que protege os arquitetos brasileiros, responsáveis pela visão doentia de modernismo tosco. Para mim, cidades como Londres e outras são o exemplo de que arquitetos picaretas não puderam prosperar ao longo do tempo. Tais cidades sempre melhoraram. Já por aqui, não diria o mesmo. E pra citar um, cito logo o Niemeyer que tem o privilégio do monopolio pra fazer o que quer em Brasilia. Você reclama disso?

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  2. Caro Dr. Sérgio Magalhães

    Tenho acompanhado com atenção ,desde o ano passado,as manifestações lúcidas,incisivas e corajosas do Sr.,em nome do IAB,no sentido de defender a revitalização da Zona Portuária do Rio e incentivar o debate sobre a incorporação da noção de sustentabilidade ambiental nas soluções arquitetônicas urbanas .O novo decreto da Prefeitura do Rio demonstra que a sua campanha não está sendo em vão.Estamos no século XXI e novas soluções e conceitos precisam ser implementados.
    Apesar de não ser arquiteta,tenho a certeza de que os argumentos que o Sr. utiliza estão absolutamente corretos.Continue enfrentando desafios em benefício da nossa "Cidade Maravilhosa".Afinal,há sempre um momento no tempo em que uma porta se abre e deixa entrar o FUTURO. E o FUTURO é AGORA.

    Abçs.Maria Helena Martins Furtado
    Diretora Técnica da SNA- Sociedade Nacional de Agricultura
    Representante da SNA na Câmara do Meio Ambiente do Fórum Permanente de Desenvolvimento Estratégico Jornalista
    Roberto Marinho da ALERJ

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  3. Prezado Sérgio Magalhães,

    Parabéns pelo artigo na edição de 7 de maio do Globo.

    Não sou arquiteto ou urbanista mas me preocupo
    com os rumos de nossa Cidade. É impressionante
    como a esmagadora maioria das intervenções
    realizadas na cidade a enfeiam. Tanto as públicas
    quanto as privadas. No campo público, as
    construções exibicionistas muito bem
    caracterizadas em seu artigo, têm um impacto enorme na paisagem.

    O Metrô tem sido minha maior preocupação. O
    volume de obras em curso é enorme e não verifico
    qualquer preocupação com o impacto sobre a
    paisagem da cidade. O histórico do metrô, como
    sabemos, não é dos mais abonadores. Desde a
    demolição do Palácio Monroe para dar lugar a um
    simples tubo de ventilação, à destruição
    arquitetônica em séria de praças com intervenções
    mostruosas: Praça Arco Verde, Cantagalo, General
    Osório, isso sem falar no arco da praça da Bandeira e o da Cidade Nova.

    Nas cidades que conheço estações de Metro são
    praticamente invisíveis. Os visitantes
    normalmente precisam perguntar aos nativos onde
    fica a estação do Metro. Normalmente a instrução
    que recebemos é do tipo: "fica atrás daquela
    banca de jornal, uma escadinha com um pequeno
    sinal luminoso em cima.." Qual seria a razão para
    as estações externas volumosas que somos
    obrigados a conviver aqui no Rio? As Praças Nossa
    Sra da Paz e Antero Quental serão as próximas
    vítimas? E a estação em construção no Jardim
    Oceânico? Nunca consegui ver uma vista externa
    desta estação. Imagino que causará grande impacto visual na vizinhança.

    A minha grande preocupação, no entanto, é com a
    ponte estaiada de proporções faraônicas que fará
    a ligação do metrô saindo da rocha a 14 metros de
    altura, passando por cima do canal da Barra e
    aterrizando no canteiro central da Avenida das
    Américas. A ponte em si não é feia, mas é
    totalmente inadequada para aquele local, de
    paisagem bucólica, no encontro entre a montanha e
    a água. Um pecado. Em junho do ano passado quando
    ainda escondiam o projeto, descobri conversando
    com um engenheiro que montava o canteiro de obras
    que o metrô chegaria à Barra a 14 metros de
    altura. Não acreditei no que ouvi. Escrevi para a
    seção de cartas de O Globo indagando qual a razão
    de não se fazer uma travessia sob o canal, o que
    minimizaria o impacto da obra. Recebi como
    resposta, tb no Globo, através do sr Bento Lima
    responsável pelas obras da linha 4 que, o terreno
    daquela região era instável e que não seria
    seguro para os executantes da obra e futuros
    usuários tal travessia sob o canal. Consultei
    vários especialistas em geotecnia e mecânica de
    solos que rapidamente desmontaram estes
    argumentos. Não há qualqur problema técnico na
    travessia naquele ponto. Depois, acompanhando
    outras palestras sobre o Metrô, o mesmo Sr Bento
    Lima apresenou argumentos totalmente disintos
    para justificar a não realização da travessia sob o canal.

    A iniciativa da Prefeitura, mencionada na
    imprensa e em seu artigo , de avaliar por um
    conselho as obras a serem realizadas na cidade é
    importante. Mas me parece que a Prefeitura ainda
    está inoperante em relação a estes
    acontecimentos. Não lhe parece loucura que na
    mesma cidade onde em uma região a Prefeitura
    propõe a derrubada do Viaduto da Perimetral por
    razões urbanísticas (e eu concordo!), em outra
    região permita que uma nova Perimetral venha a
    ser erguida com impactos ainda maiores na
    paisagem? Para mim,sinceramente, não faz sentido.
    Será que a prefeitura não deveria tb. opinar
    (enquanto há tempo!) no projeto destas novas
    estações (que não consigo ver um esboço sequer)?

    Obrigao por ouvir (ler!) este desabafo de um
    carioca em desespero por ver sua cidade sendo destruída a cada intervenção.

    Mais uma vez, parabéns pelo artigo.

    Saudações

    Luis Fernando Azevedo

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  4. Sérgio, (...) os seus artigos tem ajudado muito no que se refere as mudanças e releitura desta nossa Cidade. Fico impressionado como um "gaúcho maduro "como vc é tão apaixonado pelo Rio e o "defende"com tanta propriedade e a garra necessária, que só encontramos nos Homens com espírito público. Mesmo não sendo da área, sou também um apaixonado por Arquitetura e cada artigo seu é uma aula a reflexão e consequente aprendizado. Pensava não ser mais possível reverter o caminhar desta cidade; vc me faz ver outras formas e caminho; obrigado.
    Do amigo, Bernardo.

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  5. Arq. Sérgio Magalhães/O Globo

    Com'è bella quell'Italia che lasciai con dolore!

    (1) Acho que a arquitetura faz parte da Grande Arte: pintura, escultura, música sacra, música clássica e o cinema 1940/1970.
    (2) Infelizmente, os arquitetos dos séculos 20 e 21 também enlouqueceram, como os patéticos artistas (?) da tal Arte Contemporânea.
    (3) Não bastassem os horríveis e cafonas arranha-céus, temos que suportar os monstrengos de Renzo Piano e Cia. E , pior, invadiram o último reduto da civilização, que é a Europa. O que fizeram com Londres e Paris, só para citar dois exemplos, é um verdadeiro ataque terrorista. Como já haviam feito com o Rio, onde só se salva as montanhas. Até o Papa João Paulo II disse, em 1997, sobre o RJ, que "só a arquitetura divina é bela".
    (4) Leia o que disse o engenheiro americano Chaim Brown, que participou do projeto das Twin Towers em NY, em entrevista ao jornal La Stampa de Torino, em 2008: (Arrependido, não projeta mais arranha-céus)
    ."Non snaturate Torino con i grattacieli.
    .Atenção, um arranha-céu muda o coração e a alma de uma cidade. Depois do primeiro, surgem sempre outros.
    .Um arranha-céu traz sempre uma transformação radical e destrói a paisagem urbana.
    .Torino é uma cidade belíssima, estou encantado com a arquitetura de Guarini. É uma cidade a medida do homem, na escala humana. Numa paisagem como a de Torino, um arranha-céu representa um dano visível e permanente."
    (5) Como o Príncipe Charles e o grande artista italiano Adriano Celentano, odeio os arranha-céus e a arquitetura alla Guggenheim. Meu cérebro não foi deturpado, não sofro desse desvio de comportamento. O Príncipe Charles disse que os arquitetos ingleses fizeram mais mal a Londres do que a aviação alemã na segunda guerra mundial.

    Júlio Guedes, engenheiro, 64 anos

    PS. Ministro da Cultura da Itália, Sandro Bondi (53 anos): "Vou às exposições de Arte Contemporânea por dever de ofício, mas faço como a maioria, finjo que entendo mas detesto." O cérebro humano é uma máquina louca, pode nos levar de Michelangelo a Cildo Meireles e Vik Muniz (como tem otário neste mundo!), de Mandela a Bin Laden e Hugo Chaves, de Veneza a B.Horizonte e S.Paulo, da democracia ao Nazismo e ao Comunismo. E ainda dizem que Deus existe!

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