segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Sem palavreados

Arquivo publicado originalmente no jornal O Globo de 24/09/2011
Sérgio Magalhães
Estabilidade econômica, grandes eventos e investimentos em alta compõem um quadro favorável à definição de linhas para desenhar o nosso futuro urbano.
As cidades brasileiras sofreram um processo de expansão demográfica gigantesco nas últimas décadas. O país deixou de ser "eminentemente agrário", como se dizia ainda nos anos 1960. A população quase triplicou e passou a ser urbana para 85% dos brasileiros. É preciso reconhecer: foi um fantástico desempenho.
Agora, a população urbana crescerá a taxas modestas — e a das metrópoles quase nada. Não obstante, há mobilidade demográfica importante no interior de cada conglomerado, esvaziando-se algumas regiões e ocupando-se outras não infraestruturadas — com significativos danos sociais e econômicos.
Esse processo em geral é associado à desestabilização de setores produtivos importantes, como o industrial. Ele é novo na tradição urbanística do país — mas tem muitos precedentes no mundo desenvolvido.
Bons ensaios ilustram como cidades que passaram por experiências de desindustrialização e estagnação enfrentaram seus problemas. Recente livro do economista Edward Glaeser, "O triunfo da cidade", chama a atenção para os caminhos bem-sucedidos que estimulam a diversidade de iniciativas empresariais em contraste com a concentração em poucos segmentos. Segundo o autor, "em geral, há forte correlação entre a presença de pequenas empresas e o crescimento posterior de uma região".
Ocorre que a disseminação do empreendedorismo também é fortemente correlacionada com a existência de um bom ambiente. O espaço urbano de boa acessibilidade e segurança é essencial para que as pequenas iniciativas possam se desenvolver. São elas que podem fazer os desdobramentos criativos, em caminhos de ida e volta, entre os grandes produtores e o conjunto social.
Nesse sentido, recente pesquisa sobre a evolução do emprego no Rio, dirigida pelo professor Mauro Osório, aponta recuperação parcial ocorrida na última década, após tantas outras de perda da participação na economia nacional, e credita à conjunção de bons fatores e ao desenvolvimento do setor do petróleo. Contudo, alerta que outros indicadores, como o crescimento do número de estabelecimentos comerciais,apresentam desempenho muito inferior ao ocorrido nas outras capitais do Sudeste. Mostra que o "pior desempenho no Rio ocorreu em micro estabelecimentos" (crescimento de 3,7% no Rio, contra 30% em SãoPaulo e 52% no Brasil). Para o autor, é necessário investigar causas localizadas na degradação da economia nacional, e credita à conjunção de bons fatores e ao desenvolvimento do setor do petróleo.Contudo, alerta que outros indicadores, como o crescimento do número de estabelecimentos comerciais, apresentam desempenho muito inferior ao ocorrido nas outras capitais do Sudeste. Mostra que o "pior desempenho no Rio ocorreu em microestabelecimentos" (crescimento de 3,7% no Rio, contra 30% em São Paulo e 52% no Brasil). Para o autor, é necessário investigar causas localizadas na degradação da infraestrutura urbana e na violência.
A pesquisa indica que 70% da população carioca e 70% do emprego formal se localizam no corredor Centro/Zona Norte/Campo Grande-Santa Cruz, e o professor sugere que as políticas públicas de transporte deveriam priorizar este eixo. Em contraste, a Barra tem 5% da população e 6,5% dos empregos.
Em um contexto de inflexão para a recuperação, precisamos ter clareza sobre nossos objetivos urbanísticos e de desenvolvimento.
Estamos sob a égide de propostas desenhadas na década de 1960, os planos Doxiadis e Lucio Costa, e o PUB-Rio, dos anos 1970. Se é desejável que as cidades se estruturem através de planos duradouros, é preciso considerar que foram elaborados em contexto distinto, não apenas demográfico mas econômico, político e social. Eram tempos em que o Rio era capital federal de fato, embora de direito já estivesse transferida.
Intervenções hoje em implantação foram geradas naquela perspectiva, período em que, iniciando-se o esvaziamento e a desindustrialização da Zona Norte, paradoxalmente se propunha reimplantar o setor industrial na Zona Oeste. Assim, o projetado foi para expandir a cidade. É bem diferente de projetar para a estabilidade. Ou para situações de depressão ou de desindustrialização.
O Rio e a cidade metropolitana precisam ser desenhados para o século 21 — mas em planos espacializados, não planos palavreados. E que trabalhem com a realidade das regiões, inclusive o esvaziamento populacional que ocorre na Zona Norte e na Zona Sul — incorporando as novas dimensões urbanísticas contemporâneas,garantindo qualidade em todas as escalas, do micro ao macro, tanto dos ambientes como da produção econômica.
Nós já não temos todas as certezas dos modernistas. Hoje, nossos instrumentos de desenho são a sustentabilidade, a mistura de usos, a diversidade espacial, a mobilidade democratizada, a universalizaçãodos serviços públicos e a integração dos assentamentos, entre outros valores que se orientam para a equidade da cidade.
A crise por que passa o Planejamento Urbano fez com que os planos ficassem desacreditados. Mas isto ocasionou também que ficássemos sem desenho — sem "desígnio", na expressão etimológica — a orientar o nosso desejo de cidade.

Construção compartilhada

*Arquivo publicado originalmente na revista Ciência Hoje, edição 285.
Sérgio Magalhães
Sabemos que a cidade é o maior artefato da cultura; portanto, uma expressão coletiva. Assim, a sua construção deve ser responsabilidade de todos, tanto dos governos como da sociedade. Não obstante, a cidade brasileira tem sido em grande medida uma produção exclusivamente das famílias.
Há uma clara defasagem entre a idealização que fazemos sobre a cidade e os instrumentos que tornamos disponíveis para a sua concretização.
Como se explica essa aparente contradição?
Entre os pilares do pensamento contemporâneo se encontra a crescente conscientização sobre a necessidade da preservação e da defesa do patrimônio, tanto o cultural como o natural. A sustentabilidade passa a ser uma exigência ética fundamental. Igualmente, fortaleceu-se a noção de interdependência entre os agentes sociais urbanos. É cada vez mais claro o desejo de produzirmos cidades menos desiguais, de oportunidades melhor distribuídas.
Para além do discurso, isso implicaria em adoção de medidas mitigadoras em relação aos danos já constatados, mas, sobretudo, significaria políticas públicas em consonância com os novos compromissos.
Nossas cidades brasileiras tem um passivo ambiental considerável.
Grande parte dos sistemas hídricos se encontra submetida a despejos sanitários e industriais que os tornam quase moribundos. Não obstante, as cidades continuam sem política de saneamento abrangente, implicando em que o caso de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com 800 mil habitantes, e com menos de 1% de seus domicílios urbanos ligados à rede de esgotos tratados, não seja um exemplo isolado. Ao contrário, é um panorama que inclui milhares de cidades, inclusive capitais.
É alto o passivo ambiental decorrente da opção pelo transporte rodoviário nos deslocamentos casa-trabalho. E não apenas pela poluição atmosférica –o que uma mudança tecnológica nos veículos poderia minorar. O mais relevante é que o transporte rodoviário é reconhecidamente predador de território. Suas vantagens de fácil acesso estimula a ocupação urbana, é verdade, mas se torna um grave problema na formação de cidades cada vez menos densas –a demandar mais serviços, mais infraestruturas, mais equipamentos, mais territórios. Contudo, esse é o modo quase exclusivo de transporte urbano no Brasil.
No caso da moradia, a ausência de políticas públicas de crédito para a produção habitacional – situação geralmente tratada como dependente de fatores macro-econômicos, distanciados do fenômeno urbano – resultou na grande expansão do parque habitacional brasileiro sustentado basicamente pela poupança prévia das famílias, sem apoio coletivo. Assim, apenas uma em cada cinco moradias urbanas brasileiras foi construída com alguma participação dos governos ou recebeu algum tipo de financiamento, público ou privado. Essa média continua valendo mesmo com a implementação do programa Minha Casa, Minha Vida. E, se tal condição é evidência de vitalidade do povo brasileiro, é, também, matriz dos assentamentos irregulares e favelas.
Isto é, três vetores majoritariamente constituintes da cidade, infraestrutura, transporte e moradia, tem sido deixados à responsabilidade do cidadão, com minoritária participação coletiva.
É inegável que houve avanços políticos importantes nas últimas décadas, em direção à consolidação do direito à cidade, o qual compreende a possibilidade de o homem viver no território urbano em consonância com as exigências da vida contemporânea. Contudo, em que pese os ganhos políticos alcançados, esse ainda é um direito que, embora formalizado constitucionalmente, não se encontra plenamente conquistado na prática da vida urbana. Enfim, trata-se de um direito individual que precisa ser suportado coletivamente.
Preservação ambiental, sustentabilidade, equidade urbana: é nossa tarefa ajudar a transformá-las de conceitos idealizados em prática. Para tanto, nossas cidades carecem ser compreendidas como construção compartilhada.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Beleza Sitiada

Luiz Fernando Janot*
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 03/09/2011.
A retomada do desenvolvimento econômico do Rio vem se refletindo na construção de novos edifícios empresariais e sedes de empresas, especialmente no Centro e na Cidade Nova. Em geral, são edifícios com avançados recursos tecnológicos e dotados de elementos de sustentabilidade aplicados à arquitetura. Todavia, no aspecto formal, ainda prevalecem os indefectíveis blocos prismáticos revestidos integralmente com vidros espelhados coloridos. Em suma, trata-se de uma beleza sitiada e atrelada a um modelo estético cuja imagem representa, simbolicamente, o poder econômico das empresas instaladas nesses edifícios. Paradoxalmente, recupera-se, hoje, um modelo que simbolizou — pasmem — na década de 50 o progresso econômico dos Estados Unidos. É lamentável observar essa subserviência criativa num momento em que o Rio recupera o seu papel de capital da cultura nacional.

Esse tema vem sendo debatido e estimulando o exercício crítico da arquitetura como forma de expressão cultural. A mais contundente das críticas feitas a esse modelo de concepção formal recaiu sobre a mesmice estética desses volumes prismáticos, encapsulados com vidro e destituídos de qualquer expressão formal significativa. Outra crítica recorrente diz respeito ao fato de os edifícios se apresentarem como unidades autônomas, fechadas e sem relação com o espaço urbano no seu entorno. Numa cidade como o Rio, a concepção formal de um edifício não pode desprezar a relação de contiguidade urbana, entendida como um componente indissociável da sua arquitetura. Refutando essas críticas, um dos arquitetos envolvidos com projetos dessa natureza alega que a preocupação deve ser, primordialmente, com a qualidade das edificações e que não é possível conceber uma cidade onde todas as construções sejam necessariamente marcos arquitetônicos. O próprio prefeito reconhece que a discussão estética sobre arquitetura estimula os arquitetos a refletirem e que ele mesmo vem fazendo essa reflexão ao apreciar o resultado dos últimos concursos de projetos.
Ao contrário dos países europeus onde a arquitetura e o urbanismo se impõem como requisitos indispensáveis para a valorização das cidades, no Brasil esse entendimento vem perdendo importância. Coincidência ou não, o resultado desse desinteresse se reflete na má qualidade estética das edificações. Raros são os exemplos que conseguiram superar, criativamente, as limitações impostas. Infelizmente, o deslumbramento diante de certos modismos arquitetônicos importados vem influenciando a concepção dos edifícios empresariais, tornando-os completamente desprovidos de valor cultural.
Parodiando Caetano Veloso, eu diria que a força da grana que já ergueu coisas belas, hoje, se limita a construir edifícios tecnologicamente avançados que mais parecem com aquários monumentais. Os argumentos de que esses edifícios são "sustentáveis e inteligentes" — expressão mercadológica muito utilizada — não basta para justificar a aparência anódina e despersonalizada que possuem. Numa cidade como o Rio, a conceituação de um edifício deve considerar a sua expressão formal incorporando as relações de contiguidade urbana como um componente indissociável do projeto. A arquitetura conceitual, que tanto incomoda tecnicistas e tecnocráticos, não pode se curvar diante de modelos restritivos que impedem a liberdade de criação. A estética urbana e arquitetônica não é uma abstração. É o resultado de uma articulação harmoniosa com a ambiência que a envolve.
E o que dizer da qualidade arquitetônica das demais construções que se espalham pelos bairros do Rio? A verdade é que os interesses mercadológicos que condicionam a produção arquitetônica atual não são e não poderiam ser os mesmos que produziram as antigas residências, os sobrados e os modestos prédios que emolduraram as ruas cariocas no passado. O que passou, passou, mas não se pode deixar de lamentar a obsolescência de certos bairros tradicionais cariocas em decorrência do processo desvairado de expansão urbana da cidade. Os deslocamentos populacionais dessas localidades para as novas áreas urbanizadas e a ocupação informal dos vazios urbanos existentes nesses bairros contribuíram para romper a relação respeitosa dessas localidades com a ambiência local.
Convém frisar que o pensamento crítico da arquitetura e do urbanismo não é um fim em si mesmo e muito menos a solução para os problemas e questionamentos existentes. A crítica é apenas uma forma intelectual de manter viva a discussão e a reflexão sobre temas relevantes da arquitetura e da cidade.
*Luiz Fernando Janot e arquiteto urbanista e professor da UFRJ.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Mobilidade Urbana: a experiência da Rocinha

Luiz Carlos Toledo*
O seminário “A Fábrica de Movimentos & Mobilidade Urbana: o que move a ação pública?”, realizado no IAB/RJ, levou-me a refletir sobre experiência relativamente recente quando estive a frente da equipe que elaborou o “Plano Diretor Sócio Espacial da Rocinha” - muitas vezes confundido com o PAC da Rocinha – que teve por objetivo implantar algumas proposições do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro.
Foi com satisfação que vi, no seminário, a mobilidade urbana ser tratada pelo viés correto e adequado. Isto é, sem concentração excessiva na questão dos transportes, tema importante, porém não exclusivo, quando se estuda os deslocamentos de pessoas pela estrutura urbana.
Minha entrada e de minha equipe na Rocinha deu-se a partir de um “Concurso Nacional de Ideias para Urbanização do Complexo da Rocinha”, promovido pelo Governo do Estado em convênio com o IAB/RJ, em 2005. A equipe, formada por arquitetos, engenheiros, sociólogos, assistentes sociais e moradores da comunidade, reuniu-se, durante um ano e meio, em um escritório por nós instalado na Estrada da Gávea, perto da famosa “Curva do S”, no interior da favela.
Essa imersão na área de estudo, a camaradagem com os moradores que integravam a equipe, o convívio com as lideranças locais e as dezenas reuniões realizadas nos sub-bairros da favela fizeram com que o Plano se destacasse pelo alto grau de participação popular. Se não fosse a participação dos moradores e a presença constante da equipe no dia a dia da comunidade, não teria sido possível entender o que se passava com a Rocinha e muito menos propor diretrizes para o seu desenvolvimento.
A mobilidade na Estrada da Gávea
As ligações da favela com o restante da cidade pouco diferiam, em termos de transporte público, dos deslocamentos praticados pela população de outros bairros. Na verdade os moradores da Rocinha se encontram bem servidos por linhas de ônibus e vans que passam pela Estrada Lagoa Barra, pela Rua Marquês de São Vicente e, até mesmo, cruzam a favela pela Estrada da Gávea. Entretanto, a movimentação dos moradores no interior da favela e os percursos e estratégias utilizados, não eram tão óbvios quanto pareciam ser. 
Assim procuramos ir além dos meios de transporte formais e incorporar, ao estudo, as estratégias utilizadas pelos moradores para locomover-se dentro e fora da comunidade. Essa pesquisa nos levou a algumas conclusões interessantes que nos estimularam a propor um conjunto de intervenções de grande simplicidade, evitando soluções caríssimas, envolvendo teleféricos e elevadores midiáticos, que tanto em termos físicos como simbólicos passam ao largo da delicada tessitura dos becos, vielas e ruas das favelas cariocas.
Qualquer pessoa que passe um dia na Rocinha irá se espantar com a intensa movimentação dos moradores disputando espaço com os caminhões, ônibus, vans, automóveis e motocicletas, que circulam pela Estrada da Gávea, da Via Ápia e da Rua do Valão, sem falar dos trechos carroçáveis da Rua Um e da Rua Dois, entre outras.  As raras calçadas, quando existem, são tomadas por lixo acumulado e por uma infinidade de barreiras físicas que impedem a circulação de pedestres e os obrigam a correr risco de atropelamentos.
Escadas da Rocinha
É importante frisar que a mobilidade na Rocinha se caracteriza pela sucessão de modais, sendo os deslocamentos a pé muito importantes. As dificuldades de circulação se acentuam devido as condições topográficas e obrigam as pessoas que usam ônibus, vans e moto-taxis a completarem seus trajetos a pé até as suas casas. São percursos repletos de escadarias mal projetadas e toda a sorte de barreiras, que tornam a caminhada extremamente difícil, ou impraticável para idosos ou portadores de necessidades especiais.

Durante meses analisamos esses percursos para compreender as diferentes estratégias utilizadas pelos moradores para fazer compras, visitar os amigos, ir a escola e, principalmente, para trabalhar, dentro ou fora da favela. Chegamos à conclusão que se respeitássemos essas estratégias, poderíamos adotar medidas muito simples para melhorar, em muito, a mobilidade na Rocinha. Decidimos, portanto, adotar as seguintes diretrizes:
  • Requalificar a Estrada da Gávea, principal eixo viário da favela, eliminando as barreiras físicas e abrindo espaço para a implantação de baias de ônibus, de carga e descarga e para os compactadores de lixo da CONLURB. Implantar um binário num trecho da estrada de forma a estabelecer a mão única na Curva do S e, com isso, acabar com um dos piores gargalos da via, além de facilitar o acesso à UPA.
  • Desimpedir as calçadas de barreiras físicas de forma a separar os veículos dos pedestres, aumentar a fluidez do tráfego e diminuir os engarrafamentos diários.
  • Regularizar o estacionamento de veículos, disciplinar as atividades de carga e descarga e substituir os ônibus por micro-ônibus, por serem mais adequados a geometria da via.
  • Alargar a Rua 4 que, em alguns trechos tinha menos de um metro de largura, não só para a desafogar a Estrada da Gávea, como para reurbanizar um dos trechos mais insalubres da comunidade.
  • Conectar a Rua 2 com a Rua do Valão por meio de um Plano Inclinado para facilitar a circulação nesse trajeto que hoje só é possível com muita dificuldade.
  • Requalificar as ruas principais, vielas e becos, regularizando na medida do possível o seu traçado para torná-las carroçáveis, sempre procurando evitar grandes obras e desapropriações.
  • Criação de um sistema composto por cinco Planos Inclinados que possibilitará aos moradores se deslocarem da Gávea até São Conrado à pé, superando os trechos mais difíceis por meio desses planos inclinados.
Essas propostas, entre outras contidas no “Plano Diretor Sócio Espacial da Rocinha”, privilegiam a simplicidade e o baixo custo, principalmente, se comparadas com soluções que vêm sendo adotadas em outras comunidades.


A Rua 04, antes e depois das obras de urbanização.
* Luiz Carlos Toledo é arquiteto urbanista, professor da UERJ e sócio-diretor da M&T-Arquitetura.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O pedestre em primeiro lugar

Lucas Franco
Em entrevista para a Folha de São Paulo, o diretor de desenho urbano de Nova York, Alexandros Washburn, dá uma bela lição de urbanismo contemporâneo. Para ele, "caminhar é a atividade mais importante nas cidades", portanto, para tornarmos as nossas cidades mais sustentáveis e interessantes, precisamos mudar o paradigma de projetá-las para os carros, colocando o pedestre em primeiro lugar.


Caminhar é a atividade mais importante nas cidades

PARA O DIRETOR DE DESENHO URBANO DE NOVA YORK, DECIDIR QUE O PEDESTRE É O FOCO É UMA DECISÃO POLÍTICA FUNDAMENTAL

VANESSA CORREA
DE SÃO PAULO



"Agora é a vez do pedestre", afirma o diretor de desenho urbano da Prefeitura de Nova York, Alexandros Washburn.
Folha conversou com o arquiteto durante o 1º Congresso Internacional de Habitação e Urbanismo, promovido pela Prefeitura de São Paulo em junho.
Ele critica o modelo de urbanização com prédios recuados e muros alto, comum em São Paulo.
 

Folha - São Paulo pretende adensar as áreas centrais para aproximar as pessoas dos empregos e da infraestrutura que já existe. A cidade não vai se tornar desagradável, cheia de prédios altos?
Alexandros Washburn -
 Não é agradável caminhar pela Quinta avenida? Não há nada de errado com prédios altos. A questão é como esses prédios se encontram com a rua. Aqui você tem uma regra que diz que os prédios devem ser recuados. Mas aí o que você tem é rua fechada com muros e grades.

E como deve ser?
O muro da rua tem que ser feito do tecido dos prédios, com lojas, janelas nos primeiros andares. Você tem que sentir que as extremidades da rua estão abertas para você. E que as pessoas estão olhando para você.
É preciso projetar desde a linha de um prédio à do outro. Em vez de recuar o prédio cinco metros, construir direto na calçada. Deixa uns três metros livres na calçada. E aí põe uma árvore, depois a guia. E então decide: Vou pôr uma ciclovia ou vou pôr os carros para estacionar aqui?
Alguém precisa desenhar isso. Hoje, está por conta própria.

Nova York enfrentou resistência dos moradores para implementar a ciclovia do East Side?
Tem havido um pouco de resistência. Mas isso é parte do processo de compreensão de como a mistura da via com as bicicletas funciona.
Em minha perspectiva, o pedestre é o mais importante. Caminhar é a atividade mais importante na cidade. Tanto pelo lado cultural como pela sustentabilidade.
Nova York tem muita sorte por lutar por ótimas ruas. Você conhece a música "Empire State of Mind", da Alicia Keys? É sobre caminhar em Nova York. Tem outra do Frank Sinatra. As ruas de Nova York são tão boas para andar que as pessoas escrevem músicas sobre isso.

O que torna a cidade "caminhável"?
Entre os edifícios, há uma quantidade limitada de metros. Então é preciso decidir quantos metros para caminhar, quantos metros para árvores, quantos metros para bicicletas, para carros. Decidir que o pedestre é o foco é uma decisão política importante para a cidade.
É por isso que Nova York é uma cidade vibrante. Caminhar na rua em Nova York é minha experiência favorita. O espaço público é muito importante para construir confiança entre as pessoas de todas as classes e etnias.

Como colocar o pedestre em primeiro lugar em uma cidade projetada para carros, como São Paulo?
Cidades são projetos de longo prazo. Os carros estão em primeiro lugar há 50 anos. Agora é a vez do pedestre. É uma questão de equilíbrio, não de eliminação.
Quando você toma a decisão de colocar o pedestre em primeiro lugar, você adota um ponto de vista. Você vê os problemas através dos olhos de um cidadão caminhando pela rua. Não são soluções mutuamente exclusivas.
Por exemplo, como pedestre, é bom ter carros parados paralelamente à calçada. Eles formam uma barreira ao movimento da rua. Carros e pessoas podem andar juntos, mas a questão é perguntar primeiro ao pedestre.

É possível transformar o Minhocão em um parque suspenso, como o High Line, de Nova York?
A comparação entre o Minhocão e o High Line é difícil. Primeiro, o Minhocão não é uma linha de trem abandonada, como o High Line. O Minhocão tem uma função de transporte ativa.
Acho que o objetivo para o Minhocão pode ser modificar essa função de transporte, não eliminá-la, e fazê-la servir melhor a vizinhança ao redor dele.
Mas acho que não se deve chegar a ideias precipitadas. É preciso um debate amplo entre comunidade e especialistas para definir qual é o objetivo social, econômico e ambiental da transformação do Minhocão. No momento, me parece que desenhar a pergunta é mais importante do que fazer um projeto.

Há semelhanças entre a revitalização da área portuária de Nova York e a Nova Luz?
Diferentemente do que fizemos com a região portuária, a Nova Luz tem o potencial de ser uma vizinhança completa: tem uma ótima estação de trem, um ótimo parque, apartamentos, escritórios, lojas. E tem uma localização estratégica, próxima ao centro. A estrutura está toda lá para que se torne um bairro excelente.
Para mim, o sucesso da Nova Luz está nos detalhes. Primeiro: como os novos prédios vão se encontrar com a rua? A calçada contribui para que exista um lugar bonito para caminhar? Os estabelecimentos estão abertos para a calçada para reforçar a vitalidade do local para o pedestre? E qual é a mistura do que já existe e do novo?

Como é a participação nos projetos de Nova York?
Nós temos uma forma de ouvir as pessoas, a "Uniform Land Use Review Process". Está na lei. Fazemos reuniões, ouvimos.
Assim, é possível pegar uma ideia da comunidade, transformá-la em uma política, que é então financiada pelo setor privado. E também um pouco pelo governo.
Um projeto que resultou desse método foi o High Line, que mudou o bairro ao redor.
Rudolph Giuliani [ex-prefeito de Nova York] já tinha assinado uma ordem para demoli-lo. Aí, dois caras organizaram um grupo chamado Amigos do High Line. Eles organizaram uma competição de ideias. Para qualquer ideia dar certo, política, financiamento e projeto têm de estar juntos.

As pessoas sempre se interessam pela mudança urbana?
Na área portuária, que é a área próxima de onde houve o ataque ao World Trade Center, nós nos engajamos com o conselho comunitário.
Mostrávamos os desenhos, argumentávamos, refazíamos. Tem muito a ver com diálogo. E às vezes pode ser muito emocional, às vezes técnico.
No final, todo mundo quis fazer com que a margem do rio ficasse melhor.
Esse é um valor importante para o desenvolvimento urbano: fazer com que o projeto pertença não só a quem o construiu, mas às pessoas que moram ali. A comunidade precisa sentir que ela quer que o projeto aconteça.

E como está a revitalização da zona portuária?
Está pronta. Você já pode ir lá e passear nela. É muito importante entender que a janela de oportunidades se abre por um tempo curto. Você tem que saber o que quer e fazer enquanto pode.
Quando a mudança vem, é de uma vez. E aí para. São Paulo é muito empolgante para mim. Me parece ser uma cidade à beira da mudança. Não tanto fisicamente, mas de ponto de vista. Quando essa mudança de perspectiva acontece é que a cidade muda fisicamente.

Você falou de ideias que surgiram da população. E quando o processo é inverso?
Tem um ditado em inglês, "o sucesso tem muitos pais". Você está sempre procurando ideias que sejam bem-sucedidas. Muitas não vão a lugar nenhum. As que dão certo são as que têm ressonância. E é isso que estamos buscando. Dá para descobrir rápido. É como quando você toca a tecla certa do piano.  

O redesenho das cidades

*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 27/08/11
Sérgio Magalhães
Em recente entrevista à revista“Carta Capital”, a presidente Dilma Rousseff defende o trem de alta velocidade Rio-SP não apenas como alternativa de transporte, mas como produtor de “reconfiguração urbana”. Considera este um aspecto ainda não discutido.
A presidente contempla dois modos de transporte urbano: o sistema sobre trilhos (trem, metrô e bonde) e o sobre pneus (ônibus e automóvel), e valoriza o primeiro deles. “Uma vez em Tóquio percebi que as ruas eram estreitas, mas não havia congestionamentos... me explicaram que o sistema de trens criado depois da Segunda Guerra Mundial tinha mudado a direção urbana das cidades.”
Ainda a presidente: “Vai ocorrer uma desconcentração urbana. Alguém que viva a 60, 70, até 100 quilômetros do Rio ou de São Paulo (...) entra no trem-bala, desce no Centro da cidade e vai trabalhar.
”Precisamos saudar a pauta sugerida, pois apesar de 85% da população brasileira ser urbana, pouco se debate a forma da cidade. O desafio está colocado.
Nossas grandes cidades configuraram-se a partir dos trilhos; os trens suburbanos em rede com os bondes elétricos estruturaram a cidade moderna. No Rio, os bairros da Zona Norte e as cidades da Baixada Fluminense se desenvolveram tendo as estações ferroviárias como núcleo. Os bondes foram absolutos na conformação da Zona Sul. Tudo justamente nos cinquenta anos que antecederam a Segunda Guerra...
Por ironia, quando Tóquio investe no sistema de trens, nós o desconstruímos, em benefício do automóvel. Acabaram os bondes e levamos à míngua o sistema ferroviário suburbano, na segunda metade do século XX.
Mesmo à míngua, o sistema ferroviário do Rio foi preservado. Chegando ao fundo do poço, a operação de seus serviços foi privatizada. Melhorou, contudo continua aquém do razoável, e transporta apenas 1/3 do que nos anossetenta, então com 1,2 milhão de viagens/dia. Hoje, ressalta como oportunidade única para o desenvolvimento do Rio se for transformado em metrô de superfície. Nesta condição, talvez chegue a 3 milhões de passageiros/dia, ampliando a mobilidade metropolitana com conforto, segurança e confiabilidade— tudo que é escasso no transporte público. E ajudando a recuperara vitalidade da região, onde moram 8 milhões de cidadãos, 70% da população da metrópole. Nenhum outro investimento tem melhor custo/benefício.
De outra parte , é preciso considerar que a hegemonia do transporte rodoviário, vigente há cinquenta anos, tem causado uma “reconfiguração urbana” predatória do ambiente natural, com enormes danos sociais e econômicos. Sobre pneus, toda cidade se expande em baixa densidade populacional, com crescente exigência por novas vias. Mais pistas, mais congestionamentos, mais poluição, mais território — maiores custos de infraestrutura e de gestão. É um modelo urbanístico condenado mesmo nos países ricos e que o utilizaram pioneiramente, como os Estados Unidos.
Assim, os novos investimentos nesse modo precisam oferecer medidas acauteladoras para que não estimulem a expansão. Especialmente nos casos da Transoeste (ligaçãoSanta Cruz-Barra) e do Arco Metropolitano (ligação Itaboraí-Itaguaí, ao norte da Baía de Guanabara).
A Transoeste passa por território pouco ocupado, as áreas ambientalmente frágeis de Guaratiba. Sabemos que limitações de legislação são pouco eficazes frente ao assédio imobiliário, legal ou ilegal. Seriam necessárias medidas que pudessem não apenas proibir, mas evitar, ocupações no entorno da Transoeste. Não é simples, mas precisam ser debatidas.
Já o Arco Metropolitano é fundamental para a logística fluminense. Mas essa tarefa não precisa estar associada à ocupação de áreas da fronteira metropolitana, também frágeis e sem infraestrutura. A população cresce pouquíssimo e há disponibilidade para indústria nos tecidos consolidados dos municípios atravessados. Assim, conviria que o desenhoda estrada fosse parecido com o da Linha Vermelha, sem saídas laterais, salvo em pontos específicos,ao invés de semelhante ao da Rodovia Presidente Dutra, onde as laterais levam à ocupação do solo.
Transporte e habitação é binômio fundamental à vida urbana. Tal como no Japão, aqui também poderá ser decisivo para o redesenho da cidade metropolitana. A presidente Dilma tem razão quando valoriza o transporte sobre trilhos para o desenvolvimento urbano. Mas se o trem de alta velocidade pode ser útil na ligação entre as metrópoles paulista e fluminense, com certeza o seu desejo, de reduzir os tempos de deslocamento casa-trabalho, será melhore mais economicamente alcançado com o investimento nos trens suburbanos.
Não há por que promover a desconcentração urbana. Ao contrário, com baixo crescimento demográfico, o desafio da “reconfiguração urbana” passa pelo desenho de cidades mais compactas, bem infraestruturadas, menos predatórias do ambiente, menos desiguais.