Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 299 - Dezembro/2012
Nos anos 1970, exacerbando-se a especulação imobiliária,
houve grande reação de moradores de Ipanema, Rio de Janeiro, contra a
construção de altos edifícios descaracterizadores do espaço urbano e da
paisagem -apelidados por “espigões”. Esse movimento teve em Millôr Fernandes
seu melhor porta-voz.
É complexa a conformação volumétrica e espacial de uma
cidade. Depende de muitos fatores –especialmente, depende da ideia que se tem
sobre a própria vida urbana. Nas cidades em que há multiplicidade de ambientes
urbanos, a legislação urbanística precisa ser adequada a cada lugar, à
paisagem, à história, às precedências. É um trabalho delicado, envolve escolhas
e expectativas.
Assim, o volume a construir e a altura das edificações são
questões a ponderar –mas não é tudo. É preciso considerar a relação dos
edifícios entre si e deles com o entorno, os usos adequados e como a ocupação
da área beneficia o todo. Trata-se da composição dos espaços públicos e da
imagem ambiental da cidade.
O que há de comum entre tantas cidades que amamos? Não serão
os edifícios, pois são muito diversos em volume, em altura, em tempo, em uso,
em tecnologia construtiva. Nada mais diferente de um arranha-céu de Nova York
do que um edifício parisiense ou ipanemense. Em todas elas, a qualidade está
relacionada a seus espaços públicos.
Os edifícios conformam esses espaços, não se sobrepõem a
eles. Caminhar com interesse e com prazer é uma das características desses
ambientes. “Flanar”, como gostava o poeta francês Baudelaire.
A partir do século 19, desde que as tecnologias construtivas
deixaram de ser vernaculares, tornando-se especializadas, e cresceram as
exigências de infraestrutura urbana, o desenho dos espaços da cidade passou a
ser responsabilidade da instância pública, função do Estado.
O que legitima esse monopólio é a busca da boa cidade. É
tarefa governamental e não pode ser discricionária. Precisa ser estudada por
corpo técnico-profissional permanente, produzindo efeitos após debate amplo com
todos os agentes promotores da cidade –sobretudo os cidadãos. Portanto, não é
uma tarefa emergencial; tampouco episódica.
A clara regulação das edificações é um atributo favorável
tanto aos negócios quanto ao controle social do que se constrói. Para isso, as
regras precisam ser fáceis de entender e duradouras.
Hoje, porém, tem prosperado o entendimento de que as
prefeituras podem negociar os parâmetros a edificar, fora dos limites da lei,
desde que haja benefícios para o erário. Assim, são permitidos maiores volumes a
edificar, maior número de andares ou usos antes inadequados, desde que haja
contrapartida de parte do empreendedor imobiliário. Justifica-se com o emprego
dos recursos em ações de interesse coletivo.
Entre conceitos correlatos, está o das Operações Urbanas, através
das quais o poder público confere à iniciativa privada a capacidade de produzir
as edificações e os espaços segundo as melhores condições econômico-financeiras
que o negócio imobiliário considerar –desde que a cidade seja atendida com
intervenções que a beneficiem.
Seja em um caso, seja no outro, trata-se de uma
flexibilização que não favorece à participação cidadã na escolha dos rumos de
sua cidade. Ao contrário, leva ao alheamento, porquanto a concepção urbanística
que vier a ser definida em debate comunitário poderá ser trocada, mais adiante,
por dinheiro.
Mesmo estando ao abrigo de leis locais ou federais, nem por
isso será legítimo esse modelo. Afinal, a cidade e seu espaço não são dos
governos. Tampouco do Estado.
A forma urbana é construída no tempo; não é imutável, mas
não há de ser volúvel.
A briga de Millôr e de seus companheiros do
movimento contra os espigões em Ipanema é a legítima participação do cidadão em
busca de espaços urbanos que tratem de beleza e encantamento –em amor por sua cidade.
Não é algo que possa ser posto à venda.