*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 306 - agosto/2013
“Eu
amo a rua”, diz João do Rio (1880-1921), em sua crônica-ensaio que inaugura o
livro famoso, acrescentando: “esse sentimento de natureza toda íntima não vos
seria revelado por mim se não julgasse que esse amor é partilhado por todos
vós.” Amor que “une, nivela e agremia”, o “único que resiste às idades e às
épocas”.
“A
rua do alinhado das fachadas, é um fator de vida das cidades” – “é a mais
igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”, diz o nosso
autor. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No
início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores modernistas
do urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado
das fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo
arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), e disseminou-se mundialmente
como febre avassaladora. Buscou-se uma nova cidade, onde a igualdade, o
socialismo e o nivelamento social fossem produzidos por um novo modelo de
urbanismo – sem ruas. Nele, cada função urbana (morar, trabalhar, circular,
recrear) estaria bem definida e se constituiria autonomamente das demais.
A
cidade modernista criou os bairros homogêneos, os condomínios isolados, os altos
edifícios autônomos da vizinhança, os shoppings centers, as autopistas, os
elevados – e a ausência de calçadas.
Cem
anos pode ser pouco na vida das cidades – mas pode nelas promover grandes
mudanças. Assim ocorreu com as cidades que cresceram nas últimas décadas sob a
égide modernista. O lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por
veículos e pela velocidade. Esse modelo foi algoz das ruas: não acabou com elas,
mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos, poluídos,
desinteressantes.
Os
edifícios foram dispensados de manter relação de escala com o espaço público; independentes
do lugar e da paisagem, responderam muito bem ao interesse imobiliário. O mesmo
interesse, aliás, que faz expandir a cidade, consumir mais terra urbana sem
proporção com o crescimento demográfico, em bairros cada vez mais distantes e
menos densos. Portanto, resultando em infraestrutura, transporte e serviços
públicos mais caros e mais escassos.
Tal
modelo urbanístico, demonstrado como insustentável e anti-urbano, ainda é o
adotado pelas cidades brasileiras. No entanto, quando viaja ao exterior, em
geral, o brasileiro busca cidades onde a rua mantém vitalidade, onde o espaço
público é bem estruturado, onde se caminha por ruas-corredores com calçadas bem
mantidas, com interesse diversificado de funções urbanas. A escala urbana
adequada, mesmo em cidades de altos edifícios, como Nova York, garante ruas nas
quais o convívio é realçado por inúmeras atividades diversas ao nível do
passante. Cidades europeias, como Paris ou Londres, mantém edifícios corporativos
de alto nível empresarial integrados a áreas residenciais, comerciais e de
serviços de pequena e média escala.
Quando
as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, elas
retomam momentaneamente a antiga vitalidade, e reivindicam uma qualidade urbana
que sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade
da segregação, do isolamento, do desperdício, da falta de serviços, da
“imobilidade” de custo proibitivo e da circulação sem vida – esta cidade não
corresponde ao sonho contemporâneo.
Paradoxalmente,
o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas
que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que tem
alma.
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