*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 21/06/2014
Sérgio Magalhães
Acabada
a 2ª Guerra Mundial, Jean Paul Sartre visita Nova York pela primeira vez. À
procura de uma imagem urbana reconhecível, que não encontra, ele se sente
perdido entre ruas retas. Para ele, a cidade não tem a mesma “natureza” da sua Paris.
Mas
a Paris que Sartre naturalizava era resultante das obras promovidas em meados
do século XIX e que então causaram estranhamento ao poeta Charles Baudelaire:
“A forma de uma cidade / muda mais rápido – ai de mim – / que o coração de um
mortal”.
Agora,
século XXI, a atriz Fernanda Torres sofre com perdas afetivo-arquitetônicas em
seu bairro, como o anunciado fechamento do Cinema Leblon. “Devia haver um
decreto para impedir que, ao crescerem, as cidades deixem de ser o que são”,
sugere.
Sartre,
Baudelaire e Fernanda sintetizam sensações de desconforto ante a perda de
referências espaciais.
Embora
saibamos que toda cidade é sempre outra, ainda que a forma seja estável, pois o
uso, as pessoas e os sentimentos são cambiantes, mesmo assim a relação com o
ambiente urbano constrói a identidade cidadã e a noção de pertencimento à
cidade. Mudar a cidade, portanto, não é ação destituída de consequências
importantes para as pessoas. E, por isso mesmo, precisa ser tratada também na
dimensão que interessa ao cidadão e à memória coletiva.
Em
nosso arcabouço jurídico, o Estado tem o monopólio de regular o volume e o uso
das edificações. O que legitima tal privilégio é a busca pela forma urbana que
melhor possa corresponder à ideia de uma boa cidade. A lei expressaria esse
caminho. No entanto, o poder público tem abstraído essa responsabilidade, priorizando
legislar sobre o aproveitamento imobiliário dos lotes através de índices
genéricos que não consideram as proporções dos edifícios entre si e com a
cidade. Se, de fato, buscasse o melhor ambiente, o Estado não deveria “vender” licenças
para construir além do permitido pela lei, o que tem sido feito crescentemente.
Com isso, a imagem ambiental da cidade, na prática, é desenhada pela
propriedade fundiária.
Abre-se
uma luta inglória entre o interesse do negócio imobiliário e as referências
coletivas e cidadãs. Parece ser o caso do Cinema Leblon.
A
lei protege o edifício e o seu uso como cinema. Mas a empresa proprietária do
imóvel e do cinema afirma que o uso só será possível se for construído um
edifício comercial no terreno. O lucro imobiliário constituirá um fundo para
manter o cinema? Essa equação não está explicada.
O
que se percebe é que a função cinema está sendo utilizada como elemento de
troca para permitir que o tombamento do imóvel seja “flexibilizado”. Fica o
cinema, mas não fica o edifício tombado. Ou seja, entre preservar a referência
de uso e a referência espacial, opta-se pela primeira.
Essa
é uma resposta que privilegia um aspecto da construção da memória coletiva em
detrimento de outro elemento dela constituinte.
Em
tempos de Copa, toda esperança pode mudar em segundos. Vimos agora como ocorreu
com a seleção campeã do mundo de 2010. As regras assim o definiram. Mas, no
caso da cidade, qual o jogo que vale?
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