Sérgio Magalhães
O centro de Porto Príncipe é plano e à beira-mar. Aí se localizam os principais equipamentos públicos, o Palácio Nacional, o estádio, a Catedral. A cidade cresceu em direção ao interior subindo até um platô a 500m de altitude, Pétionville, bairro rico. Um dos lados desse percurso é definido por montanhas, cujas encostas estão ocupadas por famílias pobres, em típicas favelas. O outro lado do percurso se derrama até se constituir em extensa planície, pouco ocupada. Nela se localizam o aeroporto e instalações da Força de Paz. A cidade tem 2,5 milhões de habitantes.
Quando as forças da ONU liberaram das gangues o bairro central de Belair, Rubem César Fernandes, diretor da ONG brasileira Viva-Rio, experiente em áreas de conflito, sugeriu organizar um esforço de requalificação do bairro. Buscou parceiros internacionais e constituímos uma missão de avaliação. Encarreguei-me do plano urbanístico.
Contudo, desde logo percebemos um condicionante: a falta de água potável. A população se abastecia por galões que ia encher em “quiosques”, supridos por caminhões-pipa. O consumo médio diário era inferior a 10 litros/pessoa, enquanto em nossas cidades é de 200 litros/pessoa. A água é escassa também pela dificuldade de captação. Buscamos suprir a carência com a perfuração de poços artezianos, com a colaboração do Batalhão de Engenharia do Exército brasileiro. Mas, as amostras foram desencorajadoras: água salobra e poluída. Investimos então em sistema alternativo, de captação da água da chuva. A experiência em uma igreja demonstrou relativa viabilidade: conseguiu-se uma suplementação para os membros da igreja que lhes permitiu dobrar o consumo. Outros equipamentos sociais, como escolas e hospitais, instalaram sistemas próprios, com bom resultado. O Viva-Rio passou a administrar quiosques do bairro, melhorando o abastecimento para as demais famílias. Não obstante, ainda é muito grande a carência de água potável.
Fizemos com universidade local o censo dos 80 000 moradores de Belair. Conhecemos as condições sanitárias e construtivas dos domicílios. Verificou-se que 58% dos domicílios tem apenas um cômodo e 90% deles não tem rede interna de água. Lembremos que Belair é bairro central, antigo. Seguramente, é melhor que as áreas mais novas, de expansão.
O lixo é outro problema, o mais evidente. Montanhas de lixo obstruíam as vias. O trabalho de uma ONG de artista haitiano que mora no exterior permitiu reduzir o lixo acumulado. Passou a existir recolhimento com alguma regularidade. Técnicos do Rio de Janeiro, com experiência na Comlurb, elaboraram um plano de coleta e destinação do lixo. Está em andamento a construção de um depósito de lixo em condições ambientais adequadas.
A eletricidade era distribuída poucas horas por dia. As ruas são carentes de iluminação pública. Enfim, o quadro de carências é incomensurável. Isto, antes do terremoto.
Agora, Porto Príncipe está semi destruída. Antes, as instituições políticas eram frágeis. Mas os símbolos arquitetônicos eram sólidos: o Palácio Nacional, a Catedral, a sede da ONU. Hoje, estes símbolos estão no chão. É o caso de recuperar as áreas centrais, reconstruir os edifícios simbólicos, referenciais para a população.
Não obstante, não me parece razoável tentar refazer todo o perdido. O tecido modal, em encostas, talvez não seja o caso recompor. É possível que estudo de ocupação das áreas vazias, na planície, possa indicar vantagens importantes, construindo-se simultaneamente redes de infraestrutura e edificações, mitigando o sofrimento dos que tudo perderam. Não será tarefa simples. Nem poderá deixar de ser embasada em um grande censo de humanidade, onde as redes sociais preexistentes possam ser preservadas ao máximo. De certo modo, não seria uma reconstrução, mas um deslocamento.
Na emergência dessas semanas, levar água para o Haiti e distribui-la é a prioridade. Será preciso vencer esta etapa para pensar-se na reconstrução da cidade. Mas ela precisará estar associada à construção de uma economia que possa garantir a sobrevivência de nove milhões de haitianos. Este é o complexo desafio que a reconstrução nos impõe. E também nele o condicionante é a carência de água da maior parte do território haitiano!
Tudo indica que o papel do Brasil se ampliará para além das forças militares, em um esforço cuja complexidade exigirá participação pluridisciplinar, a que os arquitetos brasileiros por certo não se furtarão a contribuir. O IAB-RJ, por delegação do IAB nacional, articula o apoio dos arquitetos, na possibilidade dele vir a ser desejado. O arquiteto Otávio Leonídio, membro do Conselho Superior do IAB, foi designado pelo Conselho Administrativo do IAB-RJ como coordenador desse trabalho.
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