segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Justiça e segurança para todos


*Artigo publicado originalmente no blog Favela Livre em 13/12/2010.
Sérgio Magalhães
Com a retomada do Complexo do Alemão foi dado o primeiro passo. A partir daí, o que se espera é a plena constitucionalização da cidade.
Sabemos que o Estado brasileiro é escasso, em especial nas áreas pobres, onde os serviços públicos costumam ser episódicos. Falta saneamento, bom transporte, limpeza, iluminação, conservação, em loteamentos populares, conjuntos residenciais e favelas. Estamos acostumados com a escassez e vamos dando um jeitinho até que as coisas melhorem.
Contudo, há dois serviços inerentes ao Estado que não é possível delegar: a Justiça e a Segurança. Ou o governo provê convenientemente ou fica um vazio que é ocupado pela ilegalidade. Ela começa pequeninha, uma coisa à toa. Pouco a pouco, vai crescendo. Novas atividades são incorporadas: do ponto do bicho ou da venda de drogas, os seus agentes vão assumindo o controle da área, passa-se ao transporte (vans, motos), à energia (gás), ao lazer, ao imobiliário (venda e aluguel), entre outros serviços. Os negócios crescem, precisam ser garantidos, e o controle territorial armado se avoluma. É uma rede de ilegalidade que se estabelece. E já não são apenas as áreas pobres originais que ficam sob domínio, mas a rede ilegal se desdobra por sobre os bairros vizinhos, ajudando a degradar o conjunto urbano.
É nesse processo que regiões inteiras entram em desalento, o que faz com que parcelas de sua população busque outros lugares para morar. A saída de muitos acelera o círculo vicioso da decadência do lugar.
Não estou dizendo nenhuma novidade para o carioca.
A novidade é que, agora, por razões diversas que se superpõem, constrói-se o consenso de que não é mais possível desconhecer o controle territorial armado e bandido de partes da cidade. E que é indispensável garantir-se a plena vigência das leis brasileiras em toda a cidade – sem privilégios.
Essa compreensão levou à construção política do concurso de todos os níveis de governo e da própria sociedade. E é nesse momento em que nos encontramos, com renovadas expectativas de que, finalmente, estejamos trilhando um caminho de democratização da cidade, de expansão da legalidade constitucional a todos os bairros, sejam eles ricos ou populares, garantindo-se a plena cidadania a todos.
Tenho muita esperança no futuro do Rio de Janeiro
As bases macroeconômicas do estado parecem estar bem assentadas. Importantes investimentos públicos e privados estão em andamento. Serão milhares de empregos e a qualificação de serviços decorrentes.
No entanto, isto tudo não basta para o desenvolvimento. É necessário que os cidadãos se sintam protegidos do arbítrio e da barbárie, plenamente integrados ao regime de direito construído em nosso país. É dessa possibilidade que se plantam as pequenas iniciativas, a partir das quais é possível ir tecendo a esperança que se dissemina socialmente e se desdobra no desejo de se integrar, prosperar, estudar, melhorar de vida. É desse sentimento que vão crescendo os mínimos, os micro, os pequenos e os médios negócios - e se estabelece um conjunto de prosperidade.
Cada morador da nossa cidade metropolitana precisa confiar que é cidadão protegido pelas leis brasileiras não apenas quando está no seu emprego nos bairros mais ricos, mas também quando, em casa, no seu bairro popular, na sua favela, no seu loteamento, nos seus deslocamentos pela metrópole, exerce os outros tantos papéis sociais que a nossa contemporaneidade lhe confere.
É indispensável que, rapaz ou moça, possa estudar à noite e voltar em segurança para casa; que o jovem possa trabalhar e se divertir em paz; que as famílias estejam confiantes; que os idosos e as crianças desfrutem da bem-aventurança que a tranqüilidade permite.
Nós nos encontramos, no Brasil, em tempo de inflexão, em que deixamos de ser inocentes e nos transformamos, porque queremos, em um país complexo. E uma das evidências está justamente na produção de uma rede de cidades que engloba 85% da população. Temos duas dezenas de metrópoles. Duas megacidades abrigam 1/5 da população urbana. As cidades têm crescido e os desafios decorrentes são gigantescos. Precisamos construir políticas públicas de universalização do crédito para a moradia, de qualificação do transporte público, de institucionalização das realidades metropolitanas. Precisamos aprimorar e expandir a regularização da propriedade e a urbanização de nossos assentamentos populares, favelas e loteamentos. Precisamos prover de saneamento todas as nossas cidades. Enfim, não são pequenas as tarefas que esta geração tem para alcançarmos a democratização da vida urbana.
Todas as tarefas, contudo, partem de uma base: a garantia do estado de Direito, da plena vigência da Constituição em todos os rincões, em todos os territórios.
É nesse âmbito que os acontecimentos no Complexo do Alemão podem sinalizar um novo olhar, onde a escassez de Estado passa a ser compreendida como o problema. E que é indispensável enfrentá-lo com toda a nossa energia. Por décadas foi construída a violência; o tempo agora é para a paz. Superada a insegurança, as áreas deprimidas poderão se reerguer. Não será fácil a recuperação, mas será possível. O que se precisa é a vigência plena da Constituição. Daí, o Rio de Janeiro saberá prosseguir.

3 comentários:

  1. Prezado Sergio Magalhães, li o texto e , embora o acate no geral, faço críticas pontuas, na esperança que um bom debate prolifere. Ei-las:


    “ As bases macroeconômicas do estado parecem estar bem assentadas. Importantes investimentos públicos e privados estão em andamento. Serão milhares de empregos e a qualificação de serviços decorrentes.”

    Segundo meu juízo, não está correta a afirmativa! A desordem urbana é reflexo do modelo econômico vigente. Sem entrar em detalhes, resumo que o modelo com concentração de investimentos no sudeste do país, patrocinados diretamente pelo governo, só criam expectativas aos analfabetos e desamparados desse país, geralmente localizados no Nordeste. Cada obra que se propala, como a das Olimpíadas ou a da Copa, atrai uma multidão de pessoas de outras regiões sem qualificação. O equívoco está em achar que o Estado tem papel direto em projetos privados. Portanto, se querem defender o Rio de Janeiro dessa invasão descabida, lutemos a nível nacional para que projetos de infra-estrutura sejam implementados no nordeste do país. Se tivermos que emplacar algum projeto, que a mão-de-obra seja treinada previamente, usando o material humano que já dispomos na própria região.


    “...No entanto, isto tudo não basta para o desenvolvimento. É necessário que os cidadãos se sintam protegidos do arbítrio e da barbárie, plenamente integrados ao regime de direito construído em nosso país. É dessa possibilidade que se plantam as pequenas iniciativas, a partir das quais é possível ir tecendo...”

    Segundo meu juízo e o que consta nos manuais de economia como importante para o desenvolvimento é a ambientação econômica competitiva. A Teoria econômica fornece dois teoremas sobre o bem estar. Ambos nos levam a atuação do governo apenas para a ambientação competitiva e quando necessário a regulação de atividades de natureza pública, com o objetivo principal de se evitar a difusão do poder econômico ou a dilapidação dos recursos comuns. O que protege o homem do arbítrio é o aparato jurídico. O nosso é precário e, claro, é condição sine qua non para o desenvolvimento de qualquer região ou país. Mas o que garante o crescimento dessas regiões é o ambiente competitivo : muitos vendendo, muitos produzindo e o poder econômico sendo combatido, principalmente pela livre entrada e saída nos negócios. Tínhamos isso antes de JK. Depois veio o planejamento de compadrio e a ditadura dos milicos tantãs que se curvaram ao capital paulista. De lá pra cá, o poder econômico se apoderou de todas as instâncias públicas, usando as políticas e os políticos apenas para seus interesses imediatos.



    “ Precisamos construir políticas públicas de universalização do crédito para a moradia, “


    Segundo meu juízo, a universalização do crédito sempre existiu. O problema são os esquemas financeiros do governo que retiram da população recursos e praticamente os doam para certos grupos. Isso não é válido nem pra rico e nem pra pobre. O que temos que fazer é tirar o governo do sistema financeiro, com a livre entrada dos cidadãos nos negócios financeiros. Crédito subsidiado só criam distorções. Quem não quer crédito subsidiado? Como você mesmo disse em post anterior, o governo pouco faz em termos de moradia. Quem está fazendo é o povo. Que continue assim e cada vez mais. Para isso, combater impostos exagerados e corrupção é o caminho.

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  2. continuando com as críticas

    “ Precisamos aprimorar e expandir a regularização da propriedade e a urbanização de nossos assentamentos populares, favelas e loteamentos. Precisamos prover de saneamento todas as nossas cidades. Enfim, não são pequenas as tarefas que esta geração tem para alcançarmos a democratização da vida urbana.”

    Segundo meu juízo, ou fazemos a regularização da propriedade ou não fazemos. Não existe meio termo. Sou pela doação do espaço ocupado aos próprios favelados. Com o estabelecimento explícito do direito de propriedade, os novos donos tratarão de valorizá-lo, podendo obter um espetacular ganho financeiro com isso. Mas tal coisa só poderia acontecer com a regularização definitiva e o basta, como você mesmo expressa, à desordem urbana. Novas ocupações se vierem acontecer, seriam ilegais e teriam que ser derrubadas de imediato, sem interferência judicial. A lei não poderia ser violada e menos ainda questionada. Claro, isso não implica que atividades de assistência social não devam existir. Foi querendo saber qual a proposta sobre o direito de propriedade para os favelados do Rio que indaguei sobre o que era o projeto morar carioca. O que ele efetivamente fará para resolver o problema? A proposta de definição imediata do direito de propriedade é barata e certamente resolverá o problema no médio prazo. Com a valorização do imóvel e as regras de urbanização definidas, todos ganharemos. Como o carioca foi leniente e oportunista por décadas não irá certamente ter a coragem de colocar pra fora dos morros do Rio de Janeiro mais de um milhão de pessoas. Se tiver tardiamente essa coragem, estarei contra!

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  3. Sendo direto: os senhores são favoráveis a regularização do direito de propriedade para os favelados? Em outras palavras, os senhores apoiam a decisão de se conceder o título de proprietário aos atuais moradores das favelas cariocas?

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