segunda-feira, 1 de abril de 2013

Descompasso urbano




*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 301 - Março/2013
Sérgio Magalhães
Tomo a liberdade de invadir a seara de cientistas políticos e de outros saberes, alguns dos mais expressivos deles presentes em “Ciência Hoje”, para comentar sobre o domínio do Estado brasileiro por parte de estamentos políticos voltados apenas a seus próprios interesses. Meu olhar é para as consequências desse domínio no âmbito do espaço construído nacional.
O sistema urbano brasileiro, como se sabe, em poucas décadas deu um salto vertiginoso no crescimento demográfico, no número de domicílios, na expansão das cidades. Simultaneamente, vertiginoso também foi o aumento das carências, na infraestrutura, na mobilidade, na segurança pública, nos serviços urbanos. A cidade se apresenta como lugar do desenvolvimento e da desigualdade.
Os números evidenciam: 175 milhões de citadinos x 12 milhões na década de 1940; 65 milhões de domicílios urbanos x 2 milhões, àquela época; ocupação urbana expandindo em taxas mais altas do que a população (reduzindo portanto a densidade demográfica); 45% dos domicílios urbanos sem esgotos; tempos de viagem casa-trabalho crescentes (ultrapassando as 2 horas diárias para um terço dos moradores das grandes cidades); parque automobilístico aumentando 66% em 8 anos, enquanto a população aumentou 11%; insegurança percebida como um dos maiores problemas sociais; escassez e precariedade na prestação dos serviços públicos.
Esse universo veio até aqui sendo construído mais ou menos no improviso. E é uma magnífica evidência da vitalidade do país e de seu povo.
O fato é que tal sistema tornou-se muito complexo –ao tempo em que a cidade, sobretudo a grande cidade, se insere como protagonista no contexto global contemporâneo, seja econômico, político ou social.
Não obstante, o Estado brasileiro continua alheio a tal patrimônio e a esse desafio. Uma evidência é a ausência de políticas públicas voltadas para as cidades, seja para a infraestrutura ou para os serviços públicos. Assim, os governos agem aquém de suas responsabilidades.
Mas se foi possível tratar as cidades no improviso, não será viável persistir nesse caminho: a qualificação do espaço urbano se apresenta como elemento central para o desenvolvimento do país e para o vigor da democracia. Uma estrutura de planejamento há de ser considerada, tanto no âmbito local como nas demais esferas de poder, através da qual as governanças possam ser efetivas. As cidades metropolitanas –e já as temos em mais de dezena- ainda não dispõem de estatutos minimamente consistentes.
Ocorre que o domínio das posições relevantes nos aparelhos governamentais que tratam da cidade, da habitação, dos serviços públicos e da infraestrutura urbana, está voltado prioritariamente às mecânicas de renovação do próprio poder político. Por definição, têm vistas ao curto prazo –e se afastam de estratégias que impliquem em investimentos constantes em períodos prolongados.
O Brasil percebeu tal conflito de interesses em alguns setores da administração federal, dando-lhes caráter de tarefa de Estado. É o caso da diplomacia, das forças armadas, da receita, entre outros poucos setores –que não inclui o urbano.
Certamente podemos dizer que a democracia há de levar ao paulatino aperfeiçoamento dos sistemas de poder. No nosso caso, porém, tem-se a sensação de crescente subordinação dos instrumentos administrativos por parte da política eleitoral. A tal ponto que, a cada troca de chefe do executivo, trocam-se os titulares de centenas ou milhares de funções de governo, alcançando terceiros, quartos e quintos escalões.
Essa organização político-eleitoral-administrativa há de ter responsabilidade na escassez de políticas públicas que estruturem o desenvolvimento e a democratização de nossas cidades. A persistir, nosso sistema urbano dificilmente poderá desempenhar a contento o papel central que a própria democracia lhe exige. Um descompasso paradoxal.


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