Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 20/07/2013
“Eu
amo a rua”, diz João do Rio, em crônica que inaugura seu livro famoso; e acrescenta:
“esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não
julgasse que esse amor é partilhado por todos vós.” Amor que “une, nivela e
agremia”, o “único que resiste às idades e às épocas”.
“A
rua do alinhado das fachadas é um fator de vida das cidades” – “é a mais niveladora
das obras humanas”, reitera. “A rua faz as celebridades e as revoltas.”
No
início do século XX, quando essa crônica foi escrita, os pensadores do
urbanismo ainda não haviam condenado a “rua corredor”, aquela “do alinhado das
fachadas” de João do Rio. A condenação se deu pouco depois, enunciada pelo
arquiteto franco-suíço Le Corbusier, e disseminou-se mundialmente como febre
avassaladora. Na cidade funcional, tudo seria autônomo: morar, trabalhar, recrear,
circular; cada função em seu lugar.
O
lugar da circulação não seria “povoado”, mas preenchido por veículos e pela
velocidade. Tal modelo foi algoz das ruas preexistentes: não acabou com elas,
mas as transformou em lugares inóspitos ao convívio, barulhentos,
desinteressantes. Os edifícios foram dispensados de manter relação de escala
com a rua; independentes do lugar e da paisagem, atenderam muito bem ao lucro
imobiliário.
Ainda
são frutos desse modelo funcionalista os bairros homogêneos, os condomínios
isolados, os shoppings centers – e, logo, as autopistas, os elevados e a
ausência de calçadas. Também os Centros sem moradia, vazios à noite e aos fins
de semana. (Lembremos que, no Rio, por trinta anos foi proibido construir
habitação na área central – em benefício dos novos bairros.)
Em
especial, o isolamento entre funções urbanas exige o uso de condução para
deslocamentos banais e leva ao aumento no tempo de viagem casa-trabalho,
alcançando o impasse que hoje assombra nossas cidades.
No
entanto, quando viaja ao exterior, em geral, o brasileiro busca cidades com
espaços públicos bem estruturados, onde se caminha por ruas-corredores de
calçadas bem mantidas, de usos diversificados. A escala urbana adequada, até em
cidades de arranha-céus, como Nova York, garante ruas nas quais o convívio é
realçado por inúmeras atividades ao nível do passante. Cidades como Paris ou
Londres mantém edifícios corporativos de alto nível empresarial integrados a
áreas residenciais, comerciais e de serviços de pequena e média escala.
Quando
as velhas ruas das cidades brasileiras se enchem de jovens a exigir mudanças, retomam
momentaneamente a antiga vitalidade - e reivindicam uma qualidade urbana que
sabemos ser possível; um outro paradigma urbanístico é desejado. A cidade da
segregação, do isolamento, da falta de serviços, da “imobilidade” de custo
proibitivo e da circulação sem vida – esta cidade não corresponde ao sonho
contemporâneo.
Paradoxalmente,
o desejo da cidade de hoje está cantado há cem anos por João do Rio, com ruas
que unem, nivelam e agremiam em um amor compartilhado por todos. Ruas que tem
alma.
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