segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Não plantou e quer colher?


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo de 17/08/2013
Sérgio Magalhães

Em julho, o Brasil emplacou 300 mil novos veículos. No mesmo mês, sedes do AfroReggae sofreram atentados a bala em favelas, no Rio. O IPEA calcula que a população brasileira pouco crescerá até 2030.
São questões isoladas? Não. Mobilidade, segurança e ocupação urbana são temas  interligados e fundamentais tanto para a qualidade de vida cidadã quanto para o desenvolvimento nacional.
O número de veículos licenciados reflete a prioridade que os governos têm dado à indústria automobilística. A partir dos anos 1960, o país optou pelo rodoviarismo. Desconstruiu a rede de bondes, enfraqueceu as ferrovias urbanas, desconsiderou o transporte de alto rendimento, investiu em viadutos e alargamento de vias. Essa opção desestruturou o espaço público, descaracterizou bairros e expandiu as cidades além do que o aumento demográfico exigiria.
A infraestrutura e os serviços públicos não acompanharam tal expansão. Partes pobres das cidades foram abandonadas pelo Estado, permitindo que favelas, loteamentos e conjuntos residenciais fossem dominados por bandidos armados.
O AfroReggae nasceu nesse contexto, e se dedica a apoiar jovens moradores de favelas a se libertarem das amarras do tráfico, através da arte. Seu líder tem sido alvo de ameaças, atribuídas a traficantes incomodados por ações em favelas onde há UPPs.
Sem crescer a população, como prevê o IPEA, não faz sentido expandir a cidade. Ao contrário, cidades compactas são mais econômicas nas infraestruturas e nos serviços públicos. Nelas, a resposta urbanística à mobilidade se promove não com mais automóveis, mas, justamente, com rede de transporte de alto rendimento (do tipo metrô) e com aproveitamento das infraestruturas existentes. E, claro, sem estímulos à especulação de terras e sem investimentos públicos que levem à expansão. Os privilégios devem ser dados aos lugares onde as pessoas já vivem e trabalham.
           
A ditadura de índices econométricos, que impõe às cidades mais automóveis e menos serviços, deverá ser rejeitada: ela plantou desigualdade. Precisará dar lugar à política que universaliza os serviços públicos, inclusive o de segurança, e valoriza o desempenho qualitativo da vida cidadã. Nenhuma parte da cidade sem a proteção da Constituição!
Mas o Estado brasileiro, nas três instâncias, precisa rearrumar-se para enfrentar os desafios urbanos contemporâneos – que as ruas estão a evidenciar. Os incipientes quadros de planejamento urbano e territorial do Estado foram desfeitos nas últimas décadas. Mesmo no setor privado, as equipes de planejamento e projeto desestabilizaram-se ante a escassez de políticas públicas correspondentes.
Seremos, porém, quase 200 milhões de brasileiros em cidades. É urgente construir a capacidade institucional de enfrentamento das demandas de médio e longo prazo localizadas no sistema urbano brasileiro. Para colher bem-estar, precisamos plantar cidades mais democráticas.

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