Sérgio Magalhães
*Artigo publicado originalmente na revista Ciência Hoje 314 - maio/2014
Irônico paradoxo. Um dos assuntos mais presentes
na mídia brasileira é o das favelas. Não obstante, é tema que não figura no rol
de preocupações do Estado brasileiro.
A favela não é um fenômeno restrito a poucas
cidades. Estão em favelas perto de 10% dos domicílios urbanos brasileiros; em
São Paulo e no Rio de Janeiro alcançam mais de 20% dos domicílios dessas
cidades.
Embora se constitua como uma tipologia
típica, onde predominam as moradias produzidas por auto-construção e na qual o
espaço público é, em geral, mal definido, hoje muitas vezes a favela é tratada
como o genérico de todo assentamento irregular, inclusive os loteamentos
populares. De certo modo esse entendimento corresponde à realidade, pois
favelas e loteamentos populares indistintamente em geral são lugares com
déficit de infraestrutura, com escassez ou inexistência de serviços públicos,
com moradias construídas segundo as possibilidades das famílias – do jeito
precário que a falta de condições financeiras permite.
Assim, essas duas tipologias associadas
constituem a maior parte das cidades brasileiras. Abrigam mais da metade das
moradias e não contam com as condições urbanísticas essenciais à vida
contemporânea.
Pode-se afirmar que, no quadro das cidades
brasileiras, há um enorme déficit de urbanização e uma grande escassez de
serviços públicos, o que muitos chamam por ausência de Estado.
Mas, ao invés de reconhecer o esforço que as
famílias pobres já fizeram em busca de sua inserção na sociedade urbana, tratar
de suprir as infraestruturas e garantir os serviços públicos nesses assentamentos
populares, o Estado volta seu interesse quase que exclusivamente para a
construção de conjuntos residenciais. Simultaneamente, ignora a realidade da
maioria e sinaliza com um modelo habitacional que não pode universalizar. Ainda,
ao abandonar à própria sorte partes importantes das cidades, o Estado permite
que elas sejam tomadas por forças da anomia e por interesses marginais, que
impõem regras próprias às populações submetidas – para além da dominação
territorial armada. A Constituição brasileira não vige nesses territórios.
Seja no tempo dos Institutos de Aposentadoria
e Pensões (anos 1940-1950), ou do BNH (anos 1960-1980) ou, ainda, do programa Minha
Casa, Minha Vida (desde 2009), o modelo habitacional a que o Estado tem se
dedicado é ineficiente mesmo tratando-se apenas da produção de moradia. Historicamente,
esse modelo produziu menos do que um quinto dos domicílios urbanos. Até mesmo
nos momentos de grande prioridade é largamente insuficiente.
Veja-se o caso do Programa MCMV. Anuncia ter
construído 1,5 milhão de domicílios desde 2009. Nesse mesmo período, o povo
brasileiro construiu mais de 7,5 milhões de residências. Ainda que se considere
alcançar a meta de 3 milhões de domicílios até 2015, ainda assim a contribuição
do MCMV – importante, não há dúvida – não chegará a 40% da produção de
domicílios urbanos brasileiros no período. Ou seja, mais de 60% dos domicílios
continuarão sendo produzidos na precariedade e na irregularidade das favelas e
dos loteamentos populares.
Estimular a produção de moradia em bases regulares,
legais, permanentes, é uma política necessária, indispensável, mas que precisa
incorporar outros modelos que não apenas a construção de conjuntos
residenciais. A expansão do crédito imobiliário diretamente às famílias é uma
alternativa desejável.
Mas, de qualquer modo, não é possível que o
país persista na ausência de políticas públicas de urbanização de favelas e
loteamentos populares com a correspondente universalização dos serviços
públicos. A incorporação desses assentamentos à cidade contemporânea – onde se
garanta às suas populações a proteção da Constituição – é uma condição para o
desenvolvimento brasileiro. Sobretudo, é um direito cidadão e uma exigência
democrática.
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