*Artigo publicado originalmente no O GLOBO de 29/05/2009
Sérgio Magalhães
Ao descobrir a América, Colombo registrou que chegara ao Paraíso. No imaginário europeu, essa foi a marca fundadora do Novo Mundo, que perdurou pelos séculos seguintes.
As cidades, nem tão recentemente, constroem marcas próprias.
No século XIX, a reforma de Paris, que a evidenciou como Cidade Luz, foi precedida de longo debate público, onde prevaleceu a ideia de reforçar o seu centro.
Victor Considérant, vereador dos bairros pobres, recomendava nele promover “um foco superior de vida, de prazer e de negócios, e dominante em beleza, em riqueza, em vitalidade e em grandeza sobre todos os outros pontos da capital”.
Esse é entendimento adotado em cidades como Nova York, Londres, Berlim, Barcelona, quando precisam de novas energias transformadoras.
O Rio de Janeiro dos primeiros séculos correspondeu à marca de Colombo e foi visto como representação do Paraíso. Quando foi necessário consolidar-se como sede republicana, adotou o proceder consagrado.
Interveio no centro, construiu a Avenida Central, o Porto e outras obras de remodelação e embelezamento, o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional e o Museu de Belas Artes. As intervenções foram tão qualificadoras que o Rio passou a ser a Cidade Maravilhosa.
A potência dessa marca se associou ao mar, só então descoberto como lugar de lazer. Sobretudo, se associou à ideia de bem-aventurança, de povo alegre, que a condição de capital lhe proporcionava com melhores empregos e oportunidades. O paraíso natural torna-se paraíso cultural.
A força dessa simbiose mudou radicalmente os vetores do crescimento urbano. Até então, a cidade era privilegiada do centro para os subúrbios. Agora, invertese: é do centro para as praias. O Rio torna-se mais complexo.
A expansão centrosul, qualificada, cativando as elites, tem alta densidade — a vida urbana se enaltece nos Anos Dourados. Em contraponto, as áreas interiores suburbanas se expandem e se esvaziam, em baixa densidade e poucos recursos. Há uma quebra, uma partição abrupta, orla e interior. Há uma assimetria de qualidade de vida entre zonas da cidade.
Tal tendência se afirma com a perda da condição de capital federal e com grande crescimento demográfico. É nos subúrbios e na Baixada que se constrói a maior parte das novas moradias populares — justamente quando se promove, por decisão nacional, a desconstrução do transporte sobre trilhos, trens e bondes, em benefício de ônibus e carros.
Adicionalmente, aumenta a pressão pela transformação de bairros da orla em lugar de trabalho. A Zona Sul passa a ser centro da metrópole para alguns serviços qualificados — que também buscam a Barra da Tijuca. Mas novos centros custam energia e investimentos — agora escassos.
Assim, é preciso reconhecer a inédita experiência do Rio. Nenhuma outra grande cidade viveu dois embates tão decisivos: a adequação urbanística a uma mudança de paradigma cultural (a descoberta do mar) e a perda da centralidade nacional, que reduziu recursos para a cidade e debilitou a ideia de bem-aventurança. E, isto, em poucas décadas.
Somos uma cidade com 12 milhões de habitantes, uma cidade global, uma economia importante. Temos história, patrimônio, cultura rica e diversificada, um povo que resume a fusão social e cultural, milagre da experiência brasileira. É nessa complexidade que o Rio se reconhece — e demanda qualificar-se para enfrentar a sua assimetria. É uma exigência de sua própria potência.
O modelo de Considérant não será mais o único caminho.
Sim, precisaremos dotar as regiões interiores de novos elementos de interesse, novas razões de beleza e de riqueza, capazes de fortalecer investimentos locais e permitir que se recuperem. Mas, mesmo vigorosos, é condição necessária garantirse a vigência da Constituição em todo o território, o Estado brasileiro permanentemente presente com todos os serviços, inclusive o de segurança pública. E, é indissociável, implantarse um sistema público de mobilidade de excelência. A cidade metropolitana pede reforço em sua estrutura urbanística e a sua institucionalização. Conter a expansão urbana é essencial para a sustentabilidade. Não podemos ser perdulários com o território, seja para ocupações pobres ou ricas. Ademais, temos áreas livres e ociosas em abundância.
A Cidade Maravilhosa pede ser ressignificada pela qualificação do seu espaço. A nossa cidade meritoriamente precisa que cada nova intervenção busque a máxima qualidade — na função, na abrangência social, na sustentabilidade, na beleza. A ideia de Paraíso tem suas vantagens. Mas também impõe suas exigências.
Prezado Sergio Magalhães
ResponderExcluirMuito bom o teu texto, O paraíso impõe exigências, publicado hoje no O Globo. Parabéns.
Qual o órgão que deveria impedir as barbaridades da arquitetura que de vez em quando resolvem por goela abaixo dos cariocas?
Palmas para o prefeito Eduardo Paes que resolveu demolir aquela coisa horrorosa, obra do arquiteto Casé, na entrada de Ipanema.
Agora o metrô está emporcalhando a cidade com suas pontes de gosto muito duvidoso. Vejam o trambolho que está sendo erguido em frente a prefeitura como passagem de pedestres. Quem foi o arquiteto que desenhou aquilo? É urgente que o IAB crie uma comissão para frear estas barbaridades que enfeiam a cidade maravilhosa por natureza.
Durval Mello
Sempre oportuno os seus comentários. Aos poucos se percebe que os arquitetos se fazem ouvir nos meios de comunicação de grande tirage. E isso é bom para a profissão e, principalmente, para a reflexão sobre a cidade.
ResponderExcluirParabéns, companheiro!