domingo, 20 de março de 2011

O núcleo e a essência do Rio


Sérgio Magalhães
*Artigo publico originalmente no jornal O Globo de 12/03/2011
Na velha Praça Tahrir, espaço urbano central do Cairo, foi onde vimos o povo egípcio manifestar-se, nessa onda que percorre os países árabes.
E aqui, onde o carioca se manifesta politicamente? Na Cinelândia, na Candelária, na Rio Branco. Onde o incrível fenômeno dos blocos festeja o carnaval? Na rua, no espaço público.
Uma praça, todos sabemos, é uma área livre, pública, cercada de construções. Mas, fosse apenas edifícios + área livre, seria uma imensa maquete. É o uso que a qualifica. Isto é, o espaço urbano é o material e o espiritual somados na história, construindo a memória e a identidade coletivas.
Os cidadãos se reconhecem como parceiros ao compartilharem imagens e memórias. A identidade coletiva cimenta valores e permite que o embate quotidiano se estabeleça em bases mutuamente aceitas. É um verdadeiro acordo social promovido pelo usufruto dos bens culturais, dos espaços e dos signos coletivos.
Embora, hoje, essa construção social seja também formada por outros meios da cultura, desde o rádio e aTV até aos tuíteres e internets, o espaço urbano mantém a prerrogativa de locus da interação social mais livre, a que se dá entre os diferentes. Na efervescência do imprevisto nos espaços da vida real — esta é a cidade. É o que faz a diferença entre as verdadeiras e emocionantes cidades e as idealizadas e racionais aglomerações funcionalistas.
No caso do Rio, há um diferencial na conformação dos espaços urbanos.Por sua originalidade, escala e beleza, o Pão de Açúcar, o Corcovado, os Dois Irmãos, a Penha, o maciço da Tijuca, também compõem o espaço urbano carioca e se transformam em signos permanentes. Isso dá estabilidadesingular à paisagem construída,perpassando os séculos. A destacar que esses elementos permanentes também o são para Niterói, São Gonçalo e Baixada Fluminense. Isto é, são referências para a cidade metropolitana.
Mas o espaço urbano pressupõe vitalidade. Ele exige sintonia com as forças dinâmicas da sociedade. É o passado e é o presente.
A Cinelândia, no Rio, foi a principal centralidade política, social e cultural brasileira na maior parte do século XX. Como manter sua vitalidade? É uma questão que não se esgota na preservação das edificações. Por certo, a saída da Câmara de Vereadores da Cinelândia, anunciada algumas vezes, não é solidária com o fortalecimento do lugar. Mas a recuperação do Teatro Municipal, sim. Melhorar o fluxo viário, reduzir a poluição, manter a atratividade, são medidas importantes. Mas, entre os fatores preservadores da Cinelândia como espaço fundamental do Rio sobretudo se encontra o reforço das centralidades ainda localizadas no Centro, o núcleo da metrópole.
O Aterro do Flamengo, obra dos anos 1950, transforma-se em parque sob desenho de Burle Marx. É dos mais importantes espaços do Rio. Mas sua borda, a Praia do Flamengo,sofre desde então com a decadência ambiental da Baía de Guanabara. Com a despoluição da baía é possível a requalificação que permita ao parque e à praia potencializarem o papel estratégico do conjunto para o desenvolvimento urbano do Centro e da Zona Sul. Em simetria com a transformação da zona portuária pelo projeto Porto Maravilha, o Centro terá mais um instrumento para sua recuperação.
Esse conjunto, Aterro-Centro-Porto, pontuado pelos ícones geográficos, configura-se como o mais importante espaço urbano metropolitano brasileiro. A garantia de sua vitalidade parece ser essencial para a própria vitalidade do Rio.
Isso está em sintonia com a experiência recente de grandes cidades mundiais. Nelas, busca dinamizar-se a cidade onde ela está, aproveitando-se vazios e áreas degradadas, prestando-se bons serviços públicos, melhorando a mobilidade, valorizando os espaços significativos. E essa diretriz é inexoravelmente oposta à expansão fácil do tecido urbano.
O arquiteto britânico Richard Rogers, prêmio Pritzker de 2007 (o Nobel de arquitetura), ora em visita ao Rio, defende uma cidade compacta a partir das pre existências e dos espaços urbanos. Essa recomendação faz ao Rio, e também a fez a Paris como um dos dez prestigiados arquitetos mundiais chamados pelo governo francês a pensar o futuro de sua metrópole.“A compacidade deve ser a primeira regra, é um conceito que geraeficácia, interação e urbanidade.”
O Rio precisa de seus espaços urbanos não por saudosismo. Representação, memória, identidade coletiva, são qualidades de alto valor referenciadas ao espaço urbano construídas social e historicamente.
O espaço urbano é vida e estabilidade; somos nós e nossa vivência no lugar, que nos somamos às gerações precedentes na construção da identidade e da memória comuns. Nós mudamos permanecendo os mesmos; algo assim se pediria aos espaços.

5 comentários:

  1. Oi Sérgio,
    Tudo bem?
    Acabei de ler seu texto, O núcleo e a essência do Rio, adorei!
    Lendo, me lembrei que há alguns meses, em uma apresentação do projeto p/ fechamento da Av. Rio Branco, eu comentava a função histórica que ela tem de ser o corredor de passagem das manifestações políticas na cidade. Com o fechamento para veículos e a nova função, o redesenho com áreas de jardins e mesas e cadeiras, etc, resultaria em obstáculos às manifestações.
    Bem, parece que esta discussão está encerrada, por outros motivos, é claro. Não se fala mais no fechamento da Rio Branco.

    Abraços
    Martha

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  2. Vejo neste texto uma boa síntese do que aprendi sobre urbanismo, destacando o arquiteto paulista ganhador de prêmio internacional, por mérito e não por politicagem. Vejo também muito do que o arquiteto ingles fala e vejo muito do que você mesmo fala. Parece até uma poesia. Para mim isso basta, porque logo organizo as minhas idéias num modelo peculiar que construi sobre urbanismo. Mas será que com apenas poesia o povo, o povinho e o povão vão entender do que falamos?

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  3. Parabens pelo brilhante artigo publicado em O Globo!
    Este tipo de reflexão é fundamental para o futuro de nossa cidade querida, principalmente nesse momento de boom econômico,
    que já começa a gerar um boom tambem no setor da construção.
    Dinheiro na mão e pouca reflexão na cabeça costuma gerar péssimos resultados.
    Nossa geração, que parecia desperdiçada, recebeu a incumbência de gerenciar esta retomada do crescimento e, para isso, precisaremos de muitas cabeças pensantes como a sua.
    Obrigado por este belíssimo texto.
    Já me sinto mais otimista agora!
    Abraços
    Ricardo Antonio

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  4. Prezado Sérgio,
    Li seu artigo de sábado no Globo. Tenho 59 anos, sou carioca - sou nadador - e atualmente moro em Niterói.
    Quando eu era menino, costumava fazer uma travessia a nado que saía da praia do Forte São João - na Urca - contornava o Morro Cara de Cão e terminava em frente ao Hotel Glória. Nessa época havia também a travessia Rio Niterói saindo da Praia do Flamengo e terminando em Icaraí. Essas duas travessias hoje em dia são impensáveis por uma questão de higiene e de saúde.
    Continuo participando de travessias: dos Fortes: Posto Seis ao Leme, dos Bravos: Ilha das Cagarras Ipanema, e outras que além de lindas são eventos que atraem vistas para a nossa cidade. Vêm atletas de todo o mundo.

    PORQUE ESCREVO PARA O SENHOR: eu quero começar a fazer um movimento pela despoluição da Baia. Não mais uma reivindicação que caia no vazio por sua obviedade, mas algo que cresça e "cutuque" as autoridades. Acredito que as concentrações para as travessias a que me referi acima, os eventos de iatismo e surf, etc. poderiam ser aproveitados pelos atletas para uma reivindicação consistente. Talvez seja um questão de aproveitar o momento (histórico e financeiro) da proximidade dos eventos que nos sorriem para fazer acontecer aqui o que aconteceu no Tâmisa, no Sena e em outros lugares. Não ignoro que o problema do Tâmisa (conhecido como o "Grande Fedor" que chegou a suspender as sessões do parlamento) não foi resolvido rápido, mas temos hoje outros recursos. De qualquer forma é preciso parar de enganar o povo com "Estações da Alegria". Não dá para limpar a Baia passando um coador de chá nela.
    É claro que vou fazer minha parte. Poderia contar com o senhor nessa GRITA?
    A propósito 1: o senhor teve a oportunidade de fazer a travessia Rio Niterói de barca? Morro de vergonha todos os dias. Me sinto em uma latrina.
    A propósito 2: o senador pelo Rio Lindberg Farias é nadador. Mas não consigo enviar mensagem para ele.

    Ass.:
    Fernão.

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  5. Conversando com quem gosto e do que gosto: Cidades e sua gente.

    Cidade é um tema fascinante. Para nós, economistas, a referência imediata vem com Jane Jacobs (ver o texto JANE JACOBS: UMA LEGENDA - tradução de Mauro Almada). Ela nos diz coisas interessantes. A de destaque foi o enterro intelectual de Corbusier, enquanto urbanista. Por tabela tive, em chute frontal, que escantear quase inteiramente a turma brasileira da arquitetura “modernista”, principalmente o “gênio” Lúcio Costa. O engraçado é que associava Corbusier ao Niemeyer, deixando de fora o seu discípulo verdadeiro: Lúcio Costa. Brasília é a antítese de uma cidade normal e hoje muitos percebem que a Barra da Tijuca, outra criação “genial” dos urbanistas tupiniquins, é o símbolo anticarioca e que talvez justifique as gangs xenofóbicas que por lá surgem.

    Tomando Brasília como cristo exemplar e muito didático, em homenagem a sua cruz inóspita, ressalto os defeitos óbvios das cidades-jardins de Corbusier. Em primeira aberração futurística, incorporada em cidades de seus discípulos, vem a segmentação das atividades. Em segunda, já corroída pela primeira, vem a dimensão exagerada das quadras, em seu isolamento artificial, mascarado pela ideia de pilotis democráticos – de fato uma coisa boa. Em terceira prosopopeia claudicante, vem a falta de densidade em confusão perene entre parques e áreas livres e pouco funcionais.

    Se os erros em urbanismo já se dão na perspectiva mais agregativa, o que dizer da visão capenga sobre ruas e bairros? O que se pensa por aqui é tudo enganoso ou confuso, porque a ideia de isolamento soa como algo positivo e que acomodaria a segurança, restringindo a violência. Ledo engano. O conceito de rua adequado é o de, integrada a outra ideia marcante de densidade, gente na rua. É a aglomeração que traz segurança. O vazio só permite a espreita e ciladas covardes. Em tudo ficamos mais fracos, quando os espaços não estão sendo preenchidos.

    Nessa mesma linha de argumentação, me ocorre também o erro básico no trato com a cidade e seus cidadãos que agora volta ao debate: a lei do silêncio. Em tudo artificial. Querem, em nome da segurança esvaziar a cidade à noite. Culpam os bares pela violência. Besteira. A violência no Brasil tem fonte certa: a impunidade geral e o destrato com o orçamento federal, estadual e municipal. Ao tentarem impor novamente estúpida lei, mais rapidamente teremos uma cidade vazia e quem sabe policiais ”eficientes, porque nada terão o que fazer, em noites monótonas””, para o combate de crimes pedestres. Certamente, os bandidos inverterão seu horário de trabalho, apavorando à luz do dia os velhos e as senhoras em seus afazeres habituais. Os cidadãos, em prática de isolamento matusalém, ficarão satisfeitos, porque o silêncio e o vazio voltariam a reinar, sem entenderem que, em noites solitárias, o mesmo vazio se ampliará pois já não poderiam caminhar pelas ruas em horários não tão noturnos.

    Quem conhece alguma cidade bonita, aprazível e acolhedora, certamente encontrará em Jane Jacobs a concordância plena sobre o que é uma boa cidade.

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