Arquivo publicado originalmente no jornal O Globo de 12/02/2011
Sérgio Magalhães
A escassez de debates sobre as cidades não há de ser por desinteresse dos cidadãos. Afinal, é nas cidades em que vivemos. Mais provavelmente será pela complexidade inerente ao fenômeno urbano e dificuldade de apreensão espacial da cidade.
Não obstante, precisamos debatê-la. O que se conhece é possível defender.
Na década de setenta, o Rio viveu um embate fundamental contra a construção de espigões que descaracterizariam a cidade, sobretudo a região mais assediada, a Zona Sul.
Foi momento de exaltação do Rio, em sintonia com o debate doutrinário que se iniciava internacionalmente, de crítica ao urbanismo modernista. Cidades importantes se ajustavam ao modelo de urbanismo contemporâneo de reconhecimento das preexistências e de inserção respeitosa dos novos equipamentos urbanos.
Mas a cidade é diversa. O edifício alto, recusado na Zona Sul, se impôs no vazio da Barra da Tijuca, em acordo com o plano modernista. Sua imagem, então associada ao progresso, ajudou a consolidar o novo bairro, recebendo majoritariamente prósperos moradores da Zona Norte suburbana, já decadente, que se mudam por conta da degradação ambiental.
Ao longo dos oitenta, incentivado pelo movimento de moradores, efervesceu o debate com a criação das áreas de proteção ambiental e cultural, em defesa da imagem urbana referenciada amorosamente.
A participação de moradores ainda foi efetiva na formulação do Plano Diretor de 1992, embora com associações debilitadas pela partidarização. Esse PD caracterizou-se pela definição de instrumentos úteis à gestão, mas inovou negativamente ao tratar a cidade genericamente, deixando de observar suas espacialidades identitárias.
Lembremos que em 1930 o urbanista francês Alfred Agache elaborou o primeiro Plano Diretor para o Rio. Com visão ampla da cidade, propôs baseado no desenho do espaço urbano (a avenida Presidente Vargas é fruto do Plano).
Na década de noventa, o projeto Rio-Cidade, intervindo para qualificar os principais eixos urbanos, levou ânimo participativo aos bairros; o Favela-Bairro contou com associações de favelas ainda fortes, participando e acompanhando; o Plano Estratégico reuniu lideranças sociais, empresariais e políticas em ativa reflexão sobre a cidade.
Se, a seguir, o debate público impediu a construção do Museu Guggenheim na praça Mauá, a falta dele justamente permitiu a Cidade da Música, na Barra.
É inegável que o quadro político institucional não favorece o compartilhamento decisório na construção da cidade. O sistema eleitoral não vincula o legislador e o lugar. Antes, aceita um compromisso difuso com a cidade, como se vê no Plano Diretor generalista que acaba de ser aprovado. Tendo mais de trezentos artigos, apenas três deles (33, 117, 163) citam ambientes do Rio. Os demais artigos poderiam se aplicar a muitas cidades. Temas relevantes ficaram fora da lei. Por exemplo, como recuperar a vitalidade e a qualidade ambiental dos subúrbios –e dar-lhes condições de reter suas famílias prósperas, evitando o esvaziamento. Que imagens podem compor tal reflexão coletiva?
Nosso novo PD é inespacial e inespecífico, infelizmente.
Contudo, todos sabemos que na cidade complexa, para além da representação política formal, é necessária uma base coletiva que envolva a sociedade na promoção do espaço, agentes públicos, privados e academia. Na cidade contemporânea, onde é indispensável certo ativismo estatal, é essa base que reduz a discricionariedade nas principais decisões –e compõe metas de futuro.
No processo político de construção da cidade, sob diretrizes acordadas democraticamente, um modo efetivo de compartilhamento é por meio do debate de idéias específicas, referenciadas aos lugares, capazes de gerar imagens. Idéias de desenvolvimento, de expansão ou de contração, de mobilidade, de preservação –mas imagens. Lembremos que imagens do urbano são produtos da cultura, tem matriz coletiva, mesmo quando compostas autoralmente.
Veja-se a mobilização para reforçar o Centro do Rio, uma aspiração carioca. O projeto Porto Maravilha é importante nessa estratégia. Ele cria imagens que levam à reflexão. Agora mesmo, o Porto Olímpico, objeto de concurso público nacional de arquitetura para a Vila da Mídia e equipamentos necessários aos Jogos de 2016, promovido pela Prefeitura da cidade e organizado pelo IAB-RJ, é elemento decisivo nesse direcionamento. O seu resultado arquitetônico ajudará a enriquecer a percepção urbana, para além de exercer influência qualificadora para a cidade.
Por complexas que sejam, as cidades precisam do debate democrático. É com ele que poderemos construí-las compartilhadamente –tal como as vivemos.